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Conversei com Augusto Gaidukas sobre a polêmica em torno da cloroquina e do isolamento social. Augusto é médico interno no Hospital PUC-Campinas. Membro do Pathos – Grupo de Estudos em Patologia Aplicada do Hospital PUC-Campinas. Nessa conversa você ficará sabendo 1. porque a cloroquina não é o Santo Graal do combate ao coronavírus; 2. porque o isolamento social ainda é uma medida importante; 3. porque a Covid-19 não é como uma “gripezinha”; e, por último, 4. os erros e acertos do governo brasileiro.

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Como você avalia aqueles que defendem o uso da cloroquina para casos de Covid-19?

A cloroquina é um antimalárico, presente há várias décadas entre os medicamentos conhecidos, e tem indicações muito claras e bem conhecidas no ambiente médico, dentre as quais se incluem imunossupressão (baixa imunidade), vindo daí sua indicação no caso de lúpus e na artrite reumatoide, que são doenças autoimunes. Frente a situações de epidemias emergentes, como a de Covid-19, a química farmacêutica (que é a área que estuda e desenvolve novas moléculas para tratar doenças, como os antivirais dos anos 1990 para combater o HIV/Aids) não tem capacidade técnica ou operacional de sintetizar uma nova droga suficientemente segura e efetiva para tratar uma doença nova.

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Criar uma molécula envolve anos de estudos laboratoriais e computacionais, mesmo com pesquisadores e recursos abundantes. Como o Sars-CoV-2 (que é o nome do vírus) é novo, simplesmente não há conhecimento sobre ele para que drogas com alvos específicos (ou seja, de alta eficácia) sejam desenvolvidas. A virologia e a patologia clínica e mesmo a farmacologia em si não avançam tão rapidamente para termos uma nova molécula em pouco tempo; então, lança-se mão de medicamentos já existentes para tratar a nova doença, num esforço empírico.

"Frente a situações de epidemias emergentes, a química farmacêutica não tem capacidade técnica ou operacional de sintetizar uma nova droga suficientemente segura e efetiva para tratar uma doença nova"

No início, foi proposto um esquema antiviral tradicional, com drogas para tratar HIV, herpes e outras doenças virais contra o corona, mas que se mostrou pouco efetivo. Então veio a cloroquina, que, por melhorar o desfecho clínico em alguns casos, começou a ser explorada como o Santo Graal no combate ao Sars-CoV-2. Assim como nos anos 80, quando o advento da zidovudina e seu consequente controle pela ausência de estudos de segurança e eficácia gerou desespero e até revoltas na população soropositiva, com a criação de um mercado paralelo de drogas para o vírus – tema belamente explorado no filme Clube de Compras Dallas –, a droga da vez é a cloroquina. No entanto, é preciso tomar cuidado com soluções simplistas para problemas complexos.

Por que há tanta divergência a respeito desse medicamento?

Na China, descobriu-se que a cloroquina tinha algum efeito, e entre algum efeito e efeito nenhum, prefere-se o primeiro. No entanto, o intervalo terapêutico (a diferença entre a dose que tem efeito e a tóxica) da cloroquina é pequeno, e os efeitos adversos dessa droga são muito deletérios, dentre os quais citam-se toxicidade hepática e renal, arritmia cardíaca e retinopatia.

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Nós, médicos, vemos diariamente, e em revistas de renome, como o British Medical Journal e o New England Journal of Medicine, estudos conflitantes sobre esse fármaco; alguns dizendo que é eficiente, outros dizendo que não é eficiente, e outros dizendo que os resultados são inconclusivos. Isso se deve ao desespero frente à doença, o que é compreensível diante da epidemia desse vírus assassino.

Durante a epidemia de gripe espanhola, lançou-se mão de tudo que a farmacologia da época possuía, até de ácido acetilsalicílico em altas doses, o que causava intoxicação e morte, semelhantemente ao que tem sido feito. Não são poucos os relatos de parada cardíaca em UTIs em pacientes Covid+ após a introdução de cloroquina. Além disso, como a cloroquina é sabidamente imunossupressora, não se sabe até que ponto ela possa comprometer o sistema imune, de forma a debelar ainda mais as defesas do hospedeiro frente à infecção.

"Não que a cloroquina não seja um bom medicamento, mas ela não tem comprovação de uso para a Covid-19"

Para obter essas respostas, precisaríamos de estudos clínicos horizontais, que duram até cinco anos, e que possuem testagem massiva em humanos apenas na última fase. Nós pulamos da fase laboratorial, com a demonstração da eficácia da cloroquina em tubo de ensaio, para a fase terapêutica, ou seja, ignoramos muitas fases do estudo clínico, nas quais a toxicidade, segurança e mesmo a eficácia da cloroquina seriam postas à prova.

É como dar um tiro no escuro, acertar de primeira e achar que continuará acertando o alvo ali, sem saber o quanto o alvo se move, e gastando munição que poderia estar sendo usada para mirar em outros lugares. Não que a cloroquina não seja um bom medicamento, mas ela não tem comprovação de uso para a Covid-19. A única coisa que separa a medicina do curandeirismo é a evidência, que é obtida através de randomização, duplo-cego e placebo controlado, nenhum dos quais foram atendidos para a cloroquina.

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O princípio mais elementar da bioética é o da não maleficência – Primum non nocere. Entre a intervenção danosa e intervenção alguma, ficamos com esta. Isso nos é martelado na faculdade de Medicina desde que estamos aprendendo Anatomia. O uso de cloroquina tem consequências deletérias comprovadas, e a quantidade de pacientes tratados e a forma como os estudos observacionais em hospitais foram conduzidos não se adéqua ao mínimo necessário para descobrirmos se o bem que a cloroquina causa é maior que o mal que com ela vem junto. Isso ocorre pela ausência das etapas pré-clínicas (como o uso em ratos de laboratório). O último lugar onde fizeram testes com humanos sem etapas pré-clínicas foi Auschwitz. Mais do que uma questão médica, é uma questão ética.

Na sua opinião, o isolamento social ainda é a melhor forma de contar o avanço da doença?

O isolamento não contém a doença, ele apenas a retarda. Toda grande epidemia de um novo agente infeccioso tem um curso natural: o paciente zero transmitindo a seus próximos, que dá início a uma escala geométrica de contaminação. Uma epidemia só é contida em dois casos – quando ela mata todos os susceptíveis (que foi o caso da gripe espanhola); ou quando a população imune ou recuperada e com imunidade adquirida torna-se grande o suficiente para impedir que membros susceptíveis se contaminem, embora o vírus continue sempre circulando aqui e acolá. Vacinas também impedem a disseminação de uma doença e podem até erradicá-la, como no caso da varíola.

"O isolamento não contém a doença, ele apenas a retarda. Estamos apenas evitando que muitas pessoas, ao mesmo tempo, contraiam a doença e sobrecarreguem o sistema de saúde"

No caso do coronavírus, o que estamos fazendo é achatar a curva. Nós estamos apenas evitando que muitas pessoas, ao mesmo tempo, contraiam a doença, sobrecarreguem o sistema de saúde e tenha gente morrendo em chão de hospital, embora isso seja costumeiro no Brasil mesmo em tempos de epidemia nenhuma. Estamos desacelerando o ritmo, mas é virtualmente impossível parar o vírus.

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O ser humano é um animal social, que cumprimenta, abraça e beija seu semelhante. Da mesma forma que mais de 90% da população adulta está contaminada com o herpesvírus, o destino do coronavírus não é diferente. Como ele tem um período de incubação e transmissibilidade razoavelmente longo, diferente do ebola, que mata muito rapidamente e tem sintomas muito evidentes, ele vai continuar se espalhando. É assim que ele obteve sucesso no ambiente, surgindo de alguns morcegos e pangolins na China e se espalhando no mundo inteiro.

A somar que é uma infecção de transmissão respiratória, isso só piora tudo. O que pode ocorrer, no médio prazo, é o controle de doentes para alguns milhares em dado momento; mas, como dito, o vírus vai continuar circulando até matar ou gerar imunidade. O HIV está aí para provar isso. Enquanto uma vacina ou uma droga antiviral suficientemente eficaz não forem desenvolvidos, o pesadelo continuará.

Por que essa doença não pode ser comparada com outras, como H1N1, por exemplo?

As principais diferenças do novo coronavírus para a influenza H1N1, causador da gripe suína, ou do H5N1, causador da gripe aviária, são a gravidade do quadro que ele causa e sua transmissibilidade. Ele hospitaliza mais (10% de infectados contra 2% da influenza), infecta mais pessoas (cada contaminado infecta três pessoas, contra 1,5 do H1N1), não tem tratamento (o H1N1 tem), não tem vacina (o H1N1 também tem) e mata mais (5% dos infectados contra 0,1% da gripe).

Em artigo recente, dois pesquisadores chineses, um biólogo e um cientista computacional, descreveram um modelo de como proteínas não estruturais do vírus atacam a hemoglobina, destruindo-a, o que impede o sangue de carregar oxigênio, causando a temida insuficiência respiratória da Covid. É aí que a cloroquina age, por isso ela tem certa eficácia, embora haja controvérsias sobre seu uso.

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"O Ministério da Saúde tem feito o que pode dentro das suas limitações"

Esse artigo, que na minha opinião é digno de ser laureado com um Nobel, irá auxiliar pesquisas mediatas e imediatas em hematologia e hemoterapia, de forma a reduzir a gravidade clínica do vírus, ou mesmo desenvolver uma droga que se ligue a sítios específicos e torne o vírus inócuo dentro do organismo. Há esperança.

Poderia fazer um balanço das políticas que foram tomadas até agora pelo Ministério da Saúde?

De início, o governo federal ignorou a presença do vírus. Isso é compreensível. Não se sabia o quão grave era o novo coronavírus. Existem sete tipos de coronavírus, os quais causam resfriado comum, junto do rinovírus. É um vírus normalmente inofensivo. As autoridades sanitárias mundiais não estavam preparadas para tanto. O que se seguiu foi uma sequência de atitudes mais ou menos acertadas, como a instituição do isolamento quando ainda havia apenas algumas dezenas de casos (o certo teria sido ainda antes disso) e a destinação de recursos do erário para hospitais e pesquisa.

O Ministério da Saúde tem feito o que pode dentro das suas limitações, embora haja gente no gabinete da Presidência indo contra essas medidas por motivos que podem apenas ser suspeitados. O ato falho do Estado brasileiro foi ter atrasado medidas preventivas quando a epidemia já havia explodido fora da China. Pessoas de países atingidos, como a Itália, entraram por semanas sem nem sequer ter a temperatura aferida em solo brasileiro, ainda que o Sars-CoV-2 esteja no país desde janeiro, conforme recente informe do governo federal.

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O principal problema do Brasil, agora, é a precariedade crônica da assistência médico-hospitalar, por incompetência e negligência de políticos e gestores de saúde. Nós não temos nem sequer EPI para atender os Covid+. Muitos de nós perecerão. O colapso do sistema de saúde ocorrerá por volta de 20 de abril, daqui a pouco tempo. Será a hora crítica da Covid-19, e o ponto de viragem da epidemia no Brasil. Nós, médicos, em particular, seremos colocados à prova de uma forma que jamais imaginávamos.

A coisa mais importante, neste momento, é rezar. Rezar para que Deus continue auxiliando e protegendo os médicos e demais profissionais de saúde que estão combatendo o corona e os pesquisadores que estão buscando a cura. Se há algo que Deus tem feito, é nos proteger desse agente letal que é o coronavírus. Nós vamos vencer. É preciso ter fé.