Um dia depois da vitória de Jair Bolsonaro, a deputada estadual eleita catarinense Ana Campagnolo (PSL) escreveu em seu perfil do Facebook: “amanhã é o dia em que os professores e doutrinadores estarão inconformados e revoltados” […]. “Muitos deles não conterão sua ira e farão da sala de aula um auditório cativo para suas queixas político-partidárias em virtude da vitória de Bolsonaro. Filme ou grave todas as manifestações político-partidárias ou ideológicas”. Esse comentário repercutiu negativa e positivamente, mas o mais impactante é que teve o apoio do deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho de Jair Bolsonaro, que em sua conta no Twitter escreveu: “Lugar de militante político é em partido político. Errado está quem se aproveita do segredo das salas de aula para roubar o cérebro de nossas crianças, isso é crime. Parabéns deputada Ana Campagnolo”. Na entrevista para José Luiz Datena, o presidente eleito Jair Bolsonaro chegou a aprovar a medida: “Não tem problema nenhum, pode filmar”. Segundo ele, “o professor tem de se orgulhar e não ficar preocupado” em ser filmado. “Só o mau professor é que se preocupa com isso aí”.
Com o objetivo de refletir esse assunto para além das simplificações tóxicas e paixões ideológicas, entrevistei Gabriel Ferreira, mestre e doutor em Filosofia e professor na Unisinos, que faz uma série de distinções importantes e formula algumas impertinentes perguntas para quem se apega a soluções fáceis. Para mim, o núcleo básico do debate deve passar pela seguinte pergunta: Se existe doutrinação ideológica, como fazer o diagnóstico correto e propor soluções que não firam as liberdades individuais e criar um estado de patrulhamento e revanchismo político? O que segue na entrevista é a tentativa de pensar isso.
Com a sua experiência como professor universitário e sua formação em Filosofia, como você avalia o diagnóstico de que nas universidades predomina doutrinação ideológica de esquerda?
Para responder satisfatoriamente a essa pergunta é preciso fazer ao menos um par de distinções, a saber, entre o ambiente universitário e o escolar e, ainda, entre o domínio intelectual e o social ou difuso. Sem essas diferenciações não se pode falar a sério dessa questão e geram-se diversas distorções.
Se por doutrinação entende-se uma deliberada coerção intelectual dos alunos por parte dos professores universitários ou, ainda, a manipulação de trabalhos ou pesquisas para que se adequem a um determinado viés político ou ideológico, tal coisa simplesmente não existe. Estou há 15 anos na universidade e não conheço nem sequer um único caso do que vai acima. Exemplos no sentido contrário, no entanto, conheço aos montes. Conheço diversos professores que claramente têm uma inclinação política à esquerda e, contudo, nem sequer dedicam suas pesquisas a nada remotamente parecido com política — e olhe que na minha área, a Filosofia, isso seria muito mais justificável do que na Física ou na Engenharia.
Dito isso, podemos considerar o que chamei de aspecto social ou difuso. Inclusive por diversos fatores históricos — ligados à ditadura e à posterior abertura democrática —, as universidades brasileiras são, tradicionalmente, lugares ocupados por pessoas que se identificam politicamente como de esquerda. Para ser totalmente honesto, esse não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. No excelente livro de Shields e Dunn (Passing on the right – Conservative Professors in the Progressive University, 2016) é possível ver como professores conservadores nos EUA sentem-se pressionados pela imensa maioria contrária. Mas, voltando ao Brasil, é fato que a maior parte daqueles que estão na academia, sobretudo nas humanidades, é de esquerda.
Isso ocasiona um fenômeno que, no entanto, não é um “privilégio” do ambiente universitário, mas que ocorre virtualmente em qualquer lugar no qual se tenha tamanha assimetria de posicionamentos: há forças, pressões e jogos de influências difusas pautadas por afinidades que, de fato, geram consequências. Eu mesmo já fui vítima de um par delas. Isso não impediu, não obstante, que eu obtivesse bolsas de pesquisa no mestrado e no doutorado ou, ainda, recebesse prêmios pela qualidade dos meus trabalhos. Por fim, é evidente que essa dimensão que estou chamando de “social” é extremamente relevante no curso mais geral das coisas e não pode ser ignorada. Mas isso tem mais a ver com fatores mais gerais do que com o que geralmente entendemos quando ouvimos ou lemos “doutrinação”. Deveríamos, de fato, pensar nas razões pelas quais aquela assimetria acontece.
Quando olhamos para a escola, a situação é um pouco diferente. A dimensão social e difusa fica enfraquecida, pelo fato óbvio de que a relação aluno-professor tem aí uma dinâmica diferente, mas o aspecto intelectual ganha um pouco mais de precedência. Uma parte não desprezível dos materiais didáticos é atravessada por um viés ideológico. Some-se a isso um fator mais geral que não pode ser ignorado em absoluto: professores de educação básica tradicionalmente compreendem certa militância ideológica como componente necessário da tarefa educacional. Dito de outro modo, a ideia de que despertar “pensamento crítico” nos alunos — que geralmente significa ser crítico daquilo que o professor julga criticável — é pensada como elemento indissociável da tarefa de educar.
Assim, tomar certa posição não é visto como um ato de intromissão das posições ou crenças pessoais do professor, mas parte daquilo que deve ser feito se se quer educar. A distinção entre “conteúdo objetivo” e “posicionamento” não é nem compreendida como fundamental por parte de professores. Assim, se perguntássemos ao professor de História que, num 11 de setembro, conclama os alunos a comemorar o atentado ocorrido nos EUA (algo que vi com meus próprios olhos numa escola onde trabalhei), se ele acha que isso é um excesso subjetivo, ele negaria veementemente dizendo que objetivamente — isto é, por razões históricas — o ataque ao “império yankee” é moralmente defensável.
Por fim, feitos os comentários acima, não posso deixar de dizer que, na imensa maioria das vezes, os professores não estão nem sequer inclinados a fazer algo do gênero. Só quem não faz a menor ideia da mecânica diária de uma escola, com todo o seu universo de questões, por vezes prosaicas (como salários, mau comportamento de alunos e burocracias) e por vezes profundas (como problemas sociais, psicológicos e afetivos) que afetam os alunos e professores, pode achar que estes são agentes infiltrados com o objetivo de manipular os pobres alunos.
Como você vê a solução proposta por Ana Campagnolo, deputada estadual eleita por Santa Catarina, que sugere gravar as manifestações ideológicas dos professores de esquerda?
Penso que as soluções propostas, geralmente, não são apenas um caso de um mau remédio para uma grave enfermidade, senão que começam do desconhecimento da própria doença. Projetos como o Escola Sem Partido têm o eventual mérito de trazer à luz uma parte do problema que apontei acima. No entanto, têm efeitos colaterais perversos. O mais evidente deles, tornado ainda mais explícito por essa proposta recente, é o de, a partir do completo desconhecimento do que chamei antes de “mecânica” da escola e da sala de aula, querer transformar a já precária relação professor-aluno em um relacionamento ainda mais contraproducente em termos de ensino e aprendizado.
Do fato de que o problema, em parte, exista, não se segue que transformar a sala de aula em um ambiente de patrulhamento seja uma solução razoável. De início, porque subverte a assimetria hierárquica fundamental entre professor e aluno (é curioso notar que, nisso, eles coincidem com os pedagogos mais “vanguardistas”). A hierarquia obviamente não significa submissão total e irrestrita; o aluno deve poder contrariar o professor no domínio da argumentação racional, mas não pode rivalizar com ele em autoridade.
Nesse momento costumo ser confrontado com casos pontuais nos quais um professor ameaça alunos por questões ideológicas, proíbe manifestações contrárias ou, ainda, constrange alunos que pensam de maneira distinta. Reconheço completamente que esses casos são reais e se repetem muitas vezes. Duas coisas, então, devem ser ditas. O professor que age assim está, claramente, subvertendo a finalidade daquela hierarquia (que é fundamental para o aprendizado, mas não é salvo-conduto para qualquer atitude do professor), mas disso não se segue que a solução consista em levar tal subversão a seu extremo e fazer do aluno o fiscal policial do professor. Some-se a isso a cada vez mais comum postura em relação às assim chamadas microagressões.
Quem o faria e como estabeleceríamos os limites entre o que que é uma discordância ou uma correção feita por um professor e o que é um assédio intelectual ou doutrinação? Nos casos mais escabrosos é fácil, mas não são eles os mais problemáticos. Apenas a título de exemplo de como as avaliações de alunos não são sempre regidas por aspectos racionais, um recente estudo, publicado mês passado na Medical Education, mostrou que alunos avaliam o material didático, o professor, a qualidade do conteúdo e a metodologia aplicada de maneira significativamente melhor quando cookies de chocolate são fornecidos pelo professor.
Há ainda uma última coisa em se tratando das universidades: não raro, nas humanidades, há cursos monográficos, isto é, cursos inteiros dedicados ao pensamento ou obra de um único autor que, por ser denso, demanda tal investimento. Há propostas que vão no sentido de cobrar que toda aula ou curso divida seu tempo de maneira equânime entre a exposição de um pensamento e de seu contrário. Isso significaria que um curso inteiro sobre Descartes, Kant, Marx ou sobre Escola Austríaca de Economia seria proibido? Ou, ainda, se o professor optasse por apresentar duas posições distintas, haveria um cronômetro a medir a precisão do tempo empregado a cada uma delas? Perceba para onde vamos.
Mas note-se que o que é chamado de doutrinação é apenas um subgrupo de fenômenos da subversão do contrato implícito entre professor e alunos, que pode ocorrer de múltiplas formas. Não ensinar o conteúdo previsto e acordado é uma subversão. Ensinar mal e insuficientemente também o é. Negligenciar os alunos diante de suas dificuldades também. Gravar as aulas é a solução mais racional para esses casos?
Considerando que professores pratiquem doutrinação em sala de aula, e que filmar professores pode abrir precedente perigoso de patrulhamento e uma onda de fiscalizadores, qual solução poderia ser proposta?
A solução passa por aspectos múltiplos, dos quais vou mencionar três que julgo mais importantes. Uma parte da solução mais plausível para os casos acima é, precisamente, a mesma aplicável ao caso da doutrinação: o acompanhamento e a pressão por parte dos pais. A fiscalização é tarefa da família, e não do aluno.
Isso nos reenvia a outro aspecto que é frequentemente negligenciado: a participação ativa dos pais no acompanhamento da educação dos filhos. Não deixa de ser curioso que uma parcela considerável daqueles que apoiam medidas como as que foram propostas pela deputada eleita são os mesmos que advogam o homeschooling (que eu, particularmente, acho que deve ser permitido); ora, por um lado, demandam o controle total da educação dos filhos e, por outro, nem sequer pressionam as escolas por maior qualidade no que fazem?
Há inúmeras ações pontuais a serem cobradas, como a divulgação, nas escolas, da nota do Ideb, a fim de que os pais possam escolher as escolas com os melhores desempenhos. Os estudos do economista Gustavo Ioschpe, publicados em livros, são excelentes recursos para se pensar atitudes nesse sentido.
Uma segunda coisa, que para mim é evidente, é que a elevação do nível intelectual e da formação dos professores traria a reboque a completa solução desse problema. Professores cuja formação e nível intelectual são maiores certamente não enxergam sua atividade como parte integrante de um processo revolucionário a ser implementado a partir da sala de aula. Eles levam suas áreas muito a sério para esvaziá-las com propaganda barata. No entanto, e talvez por isso, há uma força brutal contra as medidas avaliativas dos professores, por exemplo. Há dez anos se discute o Exame Nacional de Avaliação do Magistério de Educação Básica (Enameb) e sindicatos de professores quase sempre se colocam contra tal tipo de coisa. Em alguns casos, como em São Paulo, chegam a queimar livros.
Na outra ponta, há algo que não posso deixar de dizer e que tem sido uma tônica quando me pronuncio sobre esse assunto. Por razões impossíveis de se perseguir aqui, há um triste quadro que faz com que pessoas que se perfilariam à direita do espectro político simplesmente abram mão de ocupar espaços na educação. Como sugeri acima, seria interessante um autoexame de consciência da direita para averiguar por quais razões temos tão poucas dessas pessoas nas escolas e nas universidades. Certamente não é por nenhuma obstrução sistemática de matriz ideológica. No caso da universidade, basta fazer graduação, mestrado, doutorado, publicar artigos e fazer um bom trabalho digno de competir com outros. O que vejo, no entanto, é uma retração por parte dessas pessoas, o que retroalimenta uma visão equivocada da universidade brasileira, como se nela fosse impossível fazer um trabalho intelectual de qualidade. Quais são as razões, então, para que essas pessoas não venham para o outro lado do balcão?
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