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Os progressistas se apropriam de certas expressões a fim de controlar toda narrativa política no espaço do debate público. Se você não defende a agenda identitária progressista, você só pode ser uma grave ameaça à democracia liberal. O pressuposto é simples: supor que a única forma legítima de democracia é a defendida pelos atuais progressistas identitários. A destruição da democracia como espaço da cidadania ativa começa, justamente, pelo controle e deturpação da linguagem. Docilmente, o autoritarismo se disfarça numa forma domesticada de democracia.
Mas gostaria, primeiro, de definir alguns termos para não cair nos mesmos equívocos de controle da linguagem aqui denunciado. O que entendo por “progressista” no contexto desta discussão? Historicamente, o próprio liberal. O liberal parte do pressuposto de que o polo privilegiado de poder é a experiência subjetiva. A construção e a manutenção de sua identidade determinam o centro gravitacional de toda experiência política. Poder é poder se autodeclarar e se autodeterminar não só na vida íntima como na vida pública: o “eu sou” da identidade pessoal é transcrito no “nós somos” da identidade coletiva. Não há mais bem comum se não for a expressão de uma identidade coletiva injustiçada.
Em vez de natureza humana, o fundamento do direito é a autopercepção de uma identidade compartilhada por aparência corpórea, como símbolo de resistência e emancipação
O liberal progressista se transformou no grande defensor das políticas identitárias. Infelizmente, não dá para rastrear a história do termo “liberal” aqui e muito menos demonstrar sua cumplicidade moral com as políticas identitárias. Nem é meu propósito, pra ser bem sincero. Entretanto, seria muito ingênuo pensar que “liberal” significa – ou se resume ao imperativo político – o “defensor das liberdades individuais”. Definitivamente, não se trata disso. Sem investigar cada detalhezinho da própria história do liberalismo político não há possibilidade de compreensão robusta das consequências dessa doutrina. O fato é que o liberalismo político apagou as fronteiras do público e do privado, antes muito bem demarcadas.
Contudo, arriscarei uma reflexão um pouco mais conceitual. Uma das consequências lógicas do liberalismo, na sua versão pós-moderna, isto é, na sua versão “qualquer coisa vale”, consiste na noção de que os sujeitos do poder já não são mais o cidadão reconhecido pela dignidade de sua natureza racional e livre. O poder, agora, emana da associação afetiva de indivíduos despertos. Notem bem que destaquei “afetivo”. Em vez de natureza humana, o fundamento do direito é a autopercepção de uma identidade compartilhada por aparência corpórea, como símbolo de resistência e emancipação. O “eu sou”, do velho liberalismo, seria vazio demais, frágil demais para condicionar a emancipação da subjetividade numa sociedade histórica e brutalmente injusta.
A identidade subjetiva dos indivíduos precisou trazer para o centro de experiência vital o status de vítima: “nós somos” era o desdobramento necessário, devido à impotência do isolamento e à apatia individualista. O que nós somos? Vítimas de um passado opressor. Quem é vítima? Nós, mulheres. Afinal, a sociedade é machista, de fato. Quem é vítima? Nós, os negros. Afinal, a sociedade é estruturalmente racista, de fato. Quem é a vítima? Nós, os gays. Afinal, a sociedade é homofóbica, de fato. Quem é a vítima? Nós, os obesos. Afinal, a sociedade é gordofóbica, de fato. Os movimentos identitários progressistas resultam de um desesperador ato de revolta. Não por acaso, a direita identitária também assume os mesmos princípios simbólicos. Quem é a vítima? Nós, a civilização ocidental...
Há um elemento importante implícito no desejo de emancipação: as instituições tradicionais da sociedade nasceram da lógica da opressão e da exclusão. Os identitários formam complexas redes de afeto para profanar essas instituições que representam o passado opressor da sociedade. É uma luta construída a partir de um desejo de preservação existencial e destruição, de resistência e vingança. O conteúdo da identidade, a substância do “nós somos”, não é a liberdade e a cidadania, mas o grito de dor e revolta. Faz sentido? Claro que faz.
E para essa luta fazer sentido e mobilizar paixões no espaço público, a linguagem política precisa ser cada vez mais domesticada pela narrativa de dor e revolta. A gente fica discutindo limites da liberdade de expressão sem perceber que, por exemplo, o problema de todo autoritarismo não são restrições no espaço público, mas sua capacidade de seduzir corações e domar o espaço da vida interior pelo símbolo da culpa. Então, é ridiculamente óbvio, pois se trata do corolário da vingança, que qualquer crítica a uma pauta identitária deverá ser compreendida como sendo a posição de um inimigo mortal contra a própria democracia liberal.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos