Credo, eu pensava exatamente assim: Se a crença em Deus por si só é um absurdo, a crença em Cristo é um atentado contra o bom senso. Acompanhe-me: o cristão convicto não apenas declara “Creio em Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra”. Ele vai muito além quando diz acreditar “e em Jesus Cristo, seu único Filho, Nosso Senhor; que foi concebido pelo poder do Espírito Santo; nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado; desceu à mansão dos mortos; ressuscitou ao terceiro dia”. Não é um absurdo? Um escândalo? Um atentado contra a razão?
Acreditei piamente que não dava para ser cristão e, ao mesmo tempo, inteligente. Afinal, não vivemos no século 21? Século de todas as conquistas humanas. Século do futuro sem mistérios. Do Vale do Silício. Do Google. Fé e inteligência só podem ser estados de espírito inconciliáveis. Contraditórios. Hoje, o primeiro vive de migalhas e fundamentalistas. A internet, por sua vez, democratizou a inteligência. O paradoxo da Paixão de Cristo e o escandaloso absurdo da ressurreição, que redime os pecados do mundo, ultrapassavam todos os limites do entendimento e da paciência. Quem precisa de redenção depois da internet?
Farei uma confissão: mudei. Não sei se for para melhor, só sei que mudei. Acontece, principalmente depois dos 30.
Por muitos anos, desdenhei do cristianismo como um tolo arrogante. Nutria uma imagem vulgar da história cristã. Acreditava no mito iluminista da inconsistência entre conhecimento e religião, na fantasiosa imagem de que a Idade Média não passava de “Idade das Trevas” e na vulgar narrativa de que a crença cristã deveria ser a grande responsabilizada pelos maiores massacres e pelo atraso no que se refere à emancipação do homem e da mulher. Assim como a esmagadora maioria das pessoas inteligentes, eu era materialista e crente no método da ciência. Dá para ser outra coisa quando a gente contempla a própria imagem no espelho?
O teorema que me soluciona todos os dramas humanos era elegante: Quanto mais se estuda, mais incrédulo e seguro. Quanto mais conhecimento, mais ateu. Quanto mais ignorante, mais religioso. Quanto mais apegado às coisas da fé, mais distante da humanidade. Isso descrevia o meu excesso de humanismo e amor próprio.
Cá entre nós? Eu era um completo ateu imbecil e não sabia. Definição perfeita de ignorante. A encarnação da própria burrice. A minha excessiva autoestima me cegava.
Não existe fé cega. Fé se define pela capacidade de lançarmos um feixe de esperança na ignorância. Sem fé, sobra escuridão; a escuridão que nos persegue por toda a vida. Pode existir fé estranha, estapafúrdia, estúpida — como acreditar em doentes, no socialismo e que Lula caminha sobre as águas. Já a crença em Papai Noel ou na Fada dos Dentes é equivalente à crença de que a ciência é a última palavra em matéria de conhecimento. A ciência explica muita coisa. Mas entre explicar muita coisa e ser a última palavra há um abismo que só descobri depois despencar dentro dele. Detalhe: não há nada lá. É abismo mesmo, de verdade.
A ciência explica muito bem o mundo sem precisar recorrer a Deus — e assim deve ser. Porém, a crença cristã não pretende “explicar” cientificamente o mundo. Um homem religioso toma consciência de sua finitude e de que a possibilidade do mal é uma ameaça real e interior. Como lidar com a própria disposição para o mal? Eis o problema para o cristão: a vergonha de ser a razão do mal no mundo. Ou não é para ter vergonha? Hoje você chuta uma lata e encontra um progressista dizendo que não há evidências para se acreditar em Deus; os mais radicais dizem que só há mal no mundo em virtude das crenças religiosas. Será? A aposta é tão perigosa quanto dogmática. Sim, é para ter vergonha das bobagens que podemos fazer por sermos o que somos.
Cheguei à fé por um árduo caminho de experiência pessoal e estudo. Costumo dizer que cheguei a Cristo pela arte e pela dúvida. Misérias pessoais a parte, não me refiro à dúvida de gabinete, metódica. Refiro-me à dúvida existencial, de tomar consciência da própria finitude e imbecilidade. Além das muitas conversas com amigos, das horas de orações da minha mãe e de algumas tragédias pessoais, os livros que mais me ajudaram foram, cada um a seu modo, O Idiota e Os Demônios de Dostoiévski; José e Seus Irmãos, Montanha Mágica e Doutor Fausto do Thomas Mann; e as Flores do Mal do Baudelaire. Essas obras me colocaram contra a parede. Fui conduzido à fé muito mais pela experiência da arte do que pelas insuportáveis discussões “racionais”. E não poderia deixar de mencionar aqui o cineasta polonês Krzysztof Kieślowski, sobretudo o primeiro episódio, Amarás a Deus sobre todas as coisas, da série Decálogo. O conhecimento científico não pode controlar tudo.
Quanto à filosofia, eu devo muito aos estudos de Platão, Plotino e Santo Agostinho. Mas alguns autores foram decisivos: Heschel, em Os profetas e Deus em busca do homem (“God in Search of Man: A Philosophy of Judaism“); Chestov, no seu livro sobre Kierkegaard; o ateu Albert Camus, sobretudo em Mito de Sísifo como aquele que melhor mostra a condição do homem; por fim, William James: recomendo seu ensaio A vontade de crer, onde ele busca responder a seguinte pergunta: “Teria uma pessoa o direito de acreditar em alguma coisa mesmo quando lhe falta prova suficiente de sua verdade?” Pergunta perturbadora.
Tão perturbador é o desafio a que Alvin Plantinga se propõe no seu livro Warranted Chistian Belief, que acabou de ser traduzido para o português: Crença Cristã Avalizada (se o leitor tem dúvidas quando ao avalizada, sugiro a nota à edição brasileira escrita por Bruno Uchôa, conhecedor do assunto), pela editora Vida Nova e com tradução do filósofo Desidério Orlando Murcho. É obra de fôlego e de exigência intelectual.
O objetivo de Plantinga não é nada mais, nada menos que demonstrar a aceitabilidade intelectual ou racional da crença cristã. Como ele mesmo pergunta no prefácio: “nossa questão é esta: acaso uma crença desse gênero é intelectualmente aceitável? Em particular, é intelectualmente aceitável para nós, hoje? Para pessoas instruídas e inteligentes que vivem no século 21?” Não darei spoiler. Apenas recomendo o desafio, que já não pode mais ser ignorado pelo exigente público brasileiro.