Homem é preso durante os protestos em Havana (Cuba), em 11 de julho de 2021.| Foto: Ernesto Mastrascusa/Agência EFE/Gazeta do Povo
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Manifestantes cubanos saíram às ruas para protestar contra o governo comunista. Pedem liberdade e vida digna. Do jeito que muita gente fala, a pequena ilha no Mar do Caribe só pode ser a terra prometida dos revolucionários, o paraíso secular. Não só paraíso pelas belezas naturais, mas pelo regime, o autogoverno soberano do povo num reino de paz, liberdade e justiça que só não esbanja fartura à mesa por causa do bloqueio econômico norte-americano.

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No imaginário político, o comunismo cubano exerce fascínio extraordinário: a pequena república, livre e democrática, não se dobra aos arbítrios tirânicos dos imperialistas. Nesse contexto simbólico, Fidel Castro se eleva às alturas como o profeta maior – um Moisés dos nossos tempos.

No que diz respeito a Cuba, liberdade e democracia são valores cujo sentido dependente do contexto e do entusiasmo revolucionário. Ou seja: há condições específicas para ser livre e democrático. Liberdade e democracia só se sustentam na verdade da ideologia patrocinada pelo regime; fora das fronteiras da demagogia, são palavras vazias criadas para seduzir adolescentes a comprarem camisetas e bottons do Che Guevara (se bem que Che anda meio fora de moda).

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Do jeito que muita gente fala, a pequena ilha no Mar do Caribe só pode ser a terra prometida dos revolucionários, o paraíso secular em que Fidel Castro se eleva às alturas como o profeta maior – um Moisés dos nossos tempos

Felipe Neto, o garoto-propaganda do progressismo latino-americano, o mais novo intelectual de internet segundo o círculo de bajuladores da internet, recentemente descobriu as maravilhas do socialismo ideológico e escreveu sobre Cuba: “Eu sou um defensor da democracia representativa e serei sempre contra regimes autoritários. Mas o cara me perguntou se alguém já venceu na vida num país socialista. Ora porra, eu só falei o óbvio: em Cuba não há analfabetismo, a saúde é de ponta e gratuita e há MUITA segurança.”

É bonito ser a favor de democracias representativas e contrário a regimes autoritários. Por exemplo, eu sou contra a tortura de criancinhas, e ponto final. E se você é a favor, caro leitor, temos um problema. Não cabe aqui nenhuma conjunção adversativa. É categórico: não se pode aceitar a tortura de criancinhas em nenhum universo possível. Mesmo que o sangue derramado da inocência traga a felicidade eterna na ilha encantada. Poxa vida, imagine se o preço para felicidade eterna entre os povos fosse torturar inocentes no altar dos Fatos e da Razão?

Tirando os psicopatas, alguém simplesmente poderia ser capaz de argumentar: “mas veja bem, o fato é que, em certos contextos, torturar inocentes pode resolver o problema do analfabetismo, trazer de saúde de ponta e gratuita, e muita segurança”? Na fantasia, a ilha de Fidel parece chegar bem perto disso.

Embora seja bastante questionável se Cuba tenha realmente resolvido o problema do analfabetismo, da saúde e da segurança, já que informações oficiais divulgadas por governos não sejam lá muito confiáveis – exceto, claro, para ideólogos do regime –, esses, sim, são valores sem muito significado quando retirados de seu contexto social.

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Cá entre nós, qual é a vantagem de todos os cubanos serem alfabetizados se eles só podem ler o que o regime determina? Bom, sem lastros na dignidade da pessoa humana, segurança e saúde podem ser bens bastante relativos. Afinal, quem é o sujeito da segurança e da saúde: o cidadão livre ou o súdito obediente? Em se tratando do efeito da ilha encantada, porrete e cenoura se misturam.

Manuela D’Ávila escreveu o seguinte: “Eu defendo a liberdade em todos os lugares do mundo. Mas sei que o que está em jogo não é isso. É a luta por esmagar uma pequena ilha rebelde, que ousa, nas barbas dos Estados Unidos, construir um sistema diferente.” Eu defendo a liberdade, mas... Ora, o que está em jogo se não justamente a liberdade?

Lula, amigo do regime, chamou as manifestações dos cubanos pelo eufemismo “passeatas” e a ação do governo contra os manifestantes de “conversa do presidente com as pessoas”

Ela escreve com aquela paixão típica de adolescente revolucionário que defende uma nova humanidade e paga as contas da revolução com a mesada do papai. Se Cuba quer um regime diferente, socialista e autossuficiente, por que é tão dependente assim dos EUA, a maior economia capitalista do mundo? Não é o livre comércio a maior desgraça cósmica enquanto a ditadura revolucionária cubana é a coisa mais linda e autossuficiente de todo o universo? Já sei, o inferno são os outros.

Lula conseguiu ir mais longe: “O que está acontecendo em Cuba de tão especial pra falarem tanto?! Houve uma passeata. Inclusive vi o presidente de Cuba na passeata, conversando com as pessoas. Cuba já sofre 60 anos de bloqueio econômico dos EUA, ainda mais com a pandemia, é desumano”. Sim, caríssimo leitor, foi exatamente isso o que você leu: o ex-presidente brasileiro, amigo do regime, chamou as manifestações dos cubanos pelo eufemismo “passeatas” e a ação do governo contra os manifestantes de “conversa do presidente com as pessoas”.

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Pincelei esses comentários para mostrar como o caso de Cuba apenas revela aquilo que qualquer defensor incondicional da liberdade e da dignidade humana tem na consciência e no coração: a hipocrisia tem limites, mas...

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]