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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Das perguntas mais importantes

"Carnation, Lily, Lily, Rose", de John Singer Sargent. (Foto: Wikimedia Commons)

No texto Ateísmo e amizade, defendi que a experiência da amizade tem algum tipo de similaridade com a experiência da fé. Procurei mostrar que objeções do tipo “não há evidências, logo Deus não existe” não fazem sentido, e sugeri que cientistas que usam esse raciocínio é porque desenvolveram uma crença ingênua na ciência. Não foi minha intenção discutir “Deus”, apenas busquei justificar que a experiência da fé não pode ser invalidada por falta de evidências científicas. De qualquer maneira, gostaria de comentar uma objeção feita ao texto.

A ideia que temos de amizade remete a certo tipo de “experiência”, “de vivência”, “de sentimentos” que, por mais abstratos que sejam quando tomados em si mesmos, ainda assim, são suficientemente concretos para que reconheçamos sua existência. A “fome” afetiva que sentimos, de certa maneira, remete a algo razoavelmente experiencial. Já a experiência religiosa tem como referência também essas experiências, mas remetendo-as a um ente muitíssimo menos “evidente”, menos “concreto” que a experiência de amor por um determinado ser humano singular.

Em outras palavras, uma coisa é saber que se ama alguém de carne e osso; alguém ali diante de você; alguém singular te pedindo um “ombro”; exigindo confiança... Por exemplo, “Eu, João, amo Luiza”. Tal conhecimento pode ser comungado empiricamente com outras pessoas. Afinal, outras pessoas, além de João, podem “ver” Luiza, podem constatar que ela existe, que não se trata de uma amiga imaginária de João etc. O “tu” do “eu te amo” se refere a alguém concreto: Luiza existe de fato. Já o “tu” da experiência da “fé”, que se refere a Deus, não tem evidências exceto para quem dá salto na fé.

A expressão “confio em Deus como um Tu” tem uma estrutura muito diferente da expressão “Sergio é meu amigo”. Sergio evidentemente existe, outras pessoas asseguram a sua existência, logo posso ficar tranquilo porque eu não sou esquizofrênico. A experiência de amizade ou amor pode até ser uma fantasia, mas a existência de Luiza efetivamente não é fruto da fantasia de João; Sergio não é meu amigo imaginário.

Outra coisa diferente diz respeito à existência de Deus, o conhecimento de Deus dado pela fé não aponta para “nada”. Sendo assim, não seria “Deus” um amigo imaginário, como naquele filme Uma mente brilhante, sobre o matemático John Nash?

O embate a respeito da crença em Deus se dá num nível mais elementar de discussão acerca da busca de sentido da vida

Apesar da aparente dificuldade em que esse tipo de objeção nos coloca, a verdade é que ela não toca exatamente no problema. O que aparece como um beco sem saída se revela como um falso problema. O núcleo do meu argumento mostra que certo tipo de ateu — que diz não acreditar em Deus por falta de evidências — não poderia, por esta razão, aceitar o amor ou amar alguém, dado ser impossível apresentar evidências da veracidade da expressão “eu te amo” ou “sou seu amigo”.

Minha preocupação era mais com a validade do conhecimento daquele argumento, não com estatuto metafísico da “questão Deus”, das perguntas filosóficas mais importantes. Em outras palavras, o problema não tem a ver com o objeto, mas com a validada de uma experiência fundamentalmente subjetiva. Se o ateu não acredita em Deus por falta de evidências, também não pode fundamentar os seus vínculos amorosos ou de amizade.

A ideia de que a fé em Deus se refere a uma coisa muitíssimo menos evidente, menos concreta que a experiência de amor por um determinado ser humano singular não entra, nesse caso, em questão.

Dizer que a experiência religiosa aponta para experiência no cérebro de alguém que acredita em “amigos imaginários” é como dizer que a água não existe porque ter sede é só uma experiência localizada em certa região do cérebro. Ou negar a existência do amado porque a neurociência provou que o amor é só uma experiência no cérebro.

Até aqui não há nada de problemático. Uma boa parte da tradição da teologia cristã tem, como eixo central, esse caminho: Deus é como o “inexprimível, o inconcebível, o invisível e o incompreensível, aquele que vence o poder da língua humana e ultrapassa a compreensão do pensamento”, vai dizer João Crisóstomo, em Sobre a incompreensibilidade de Deus. Ou seja, para a fé, Deus não é uma “coisa” como as outras, não está aberto para a experiência empírica, e, portanto, jamais poderá ser “verificado” pelo método científico.

“Deus”, enquanto objeto de discussão racional, é um problema filosófico e dos mais instigantes. Quem se movimenta na fé precisa dar razões de que não está delirando. Quando se dispõe a dar razões já não está mais no âmbito da fé, mas no da filosofia.

O fato é que o embate a respeito da crença em Deus se dá num nível mais elementar de discussão acerca da busca de sentido da vida. Kant resumia a pergunta com as seguintes palavras: “O que me é lícito esperar?”.

Nesse sentido, o embate é anterior a tudo em termos de construção de visão de mundo. A questão “Deus” aparece quando jogamos com a totalidade da nossa vida. E a discussão sobre a veracidade da religião só é, de alguma maneira, respondida depois de um cuidadoso exame de consciência, já que todo aquele que “crê” se movimenta no âmbito de uma decisão pessoal fundamental.

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