Cena do episódio “O Tirano”, da série Dr. House: dilema do bonde moderno| Foto: Divulgação
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Nas minhas aulas de introdução à ética filosófica para os alunos da 1ª série do Ensino médio, começo analisando um dos melhores episódios da série Dr. House: o episódio 4º da Temporada 6 chamado O Tirano. Meus alunos adoram. Se você ainda não viu, recomendo que pare tudo e assista! É um dos mais instigantes exercícios acerca de um dilema moral — e, espero mostrar, político. Para ser sincero, a trama é uma versão sofisticada do chamado “Dilema do bonde”, formulado pela filósofa britânica Philippa Foot.

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A equipe do centro de diagnóstico do Princeton Plainsboro, onde House trabalha, recebe um ditador africano chamado Dibala (interpretado por James Earl Jones, famoso por dar voz a Darth Vader), que ficou doente nos Estados Unidos durante uma visita diplomática. A presença de Dibala gera muito desconforto, já que ele está sendo acusado de genocídio. Lembra muito o que aconteceu em Ruanda. Na trama, um dos médicos propõe, deliberadamente, falso tratamento ao ditador amparado em um exame falsificado. Dibala morre e o médico, no máximo, tem uma crise de consciência.

A pergunta gera muita discussão: cabe ao médico decidir matar o ditador e salvar a vida de milhares de pessoas? Detalhe importante: ninguém ficará sabendo desse nobre ato de justiça. Exceto, obviamente, a consciência do médico e de alguns amigos, que se tornaram cúmplices (no episódio eles descobrem a falsificação do exame). Pra temperar a discussão, eu adiciono uma variante ao experimento mental: o que você faria se pudesse voltar no tempo e matar o bebê Dibala? Torcer para ele pegar Covid-19 e morrer não vale. Alguém precisa sujar as mãos.

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Segundo a interpretação de Hélio Schwartsman da teoria ética consequencialista em recente artigo publicado na Folha de São Paulo, matar um ditador seria mais ou menos como “tentar assegurar a maior felicidade possível para o maior número de indivíduos”. Pois, levando o princípio utilitarismo a sério, se um “médico estaria autorizado a matar um sujeito saudável para, com seus órgãos, salvar as vidas de cinco pacientes que aguardam transplantes”, então não é muito difícil imaginar o que Hélio pensaria sobre o médico matar o tirano. Torcer para o tirano morrer é confortável. O problema é quem vai cruzar a linha vermelha.

Para Schwartsman, o consequencialismo “é o que de mais próximo temos de uma teoria ética completa e universalizável. Não é coincidência que tenha se multiplicado em inúmeras correntes, que propõem soluções imaginativas para vários desses problemas”. Bonito. No entanto, evita-se a discussão de alguns pressupostos dessa teoria ética. Por exemplo: nesse quadro de referencial teórico, negligenciar que felicidade não passa de uma vaga experiência de privação do sofrimento é fugir de um sério problema filosófico. Ora, sem responder o que é felicidade não dá nem pra começar a conversar. O que faz do consequencialismo charmoso no texto, mas difuso na prática.

O que é felicidade? Trata-se de um problema ético ou político? Quais critérios determinam que minha experiência de felicidade é, de certa forma, universalizável? Minhas experiências de privação de sofrimento são análogas às experiências de terceiros? O que é o bem-estar? Se criássemos uma máquina de bem-estar permanente cujo funcionamento dependesse do sacrifício de uma vida inocente por ano, deveríamos ligar essa máquina? O que é sacrificar uma vida em benefício coletivo? Tenho muitas dúvidas...

Por isso, acredito que toda essa defesa apressada do consequencialismo tem a ver com um texto pseudopolêmico em que Schwartsman diz torcer para que Bolsonaro morra. Ele escreve: “a vida de Bolsonaro, como a de qualquer indivíduo, tem valor e sua perda seria lamentável. Mas, como no consequencialismo todas as vidas valem rigorosamente o mesmo, a morte do presidente torna-se filosoficamente defensável, se estivermos seguros de que acarretará um número maior de vidas preservadas”. A coisa não é bem assim.

O texto de Schwartsman nada mais é do que a caricatura do pensamento liberal progressista. Não à toa, ele recorre a John Stuart Mill e Jeremy Bentham, como um anão parasitando gigantes. Diferentemente dos moralistas que pedem a cabeça do jornalista, acredito que a discussão realmente precisa ser travada no campo das ideias e da ironia. Schwartsman foi claro: “a morte do presidente torna-se filosoficamente defensável”.

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Defendo a possibilidade de se filosofar a respeito de tudo, inclusive sobre a morte do presidente em benefício de todos os brasileiros. Mas é preciso colocar as coisas nos termos corretos. A discussão sobre a morte de um presidente não pode ser resolvida apenas no âmbito da minha ideia pessoal de bem-estar, privação de sofrimento ou felicidade. Digo isso para os meus alunos quando encerro a discussão sobre o episódio do Dr. House. Há um problema nesse dilema ético aí; antes, ele apresenta uma discussão sobre a natureza da justiça.

No texto, Schwartsman evita fazer a distinção entre ética e política. A doutrina correta aqui não é ética. O médico que decidiu matar Dibala para o benefício coletivo, ao consultar o próprio senso de felicidade, esqueceu de consultar as pessoas do próprio país de Dibala para saber se essa era a melhor forma de se fazer justiça ali, naquele contexto político e jurídico. A discussão, portanto, diz respeito ao tema do tiranicídio e não pode ser reduzida à ética consequencialista.

O direito de resistência (e de matar um tirano sanguinário) despertou as melhores mentes da filosofia política, de Plutarco a Tomas de Aquino, de Aristóteles a John Locke. O tiranicídio não pode ser reduzido a uma decisão de âmbito pessoal, sobretudo referente à felicidade dos utilitaristas. Trata-se, antes de tudo, de um problema essencialmente político. Nesse sentido, acho bem cômodo torcer para um presidente morrer sem precisar justificar e agir politicamente pra isso. De pantufas, ninguém mata o tirano.