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De qualquer forma o vento sopra

(Foto: Divulgação) (Foto: )

Vivi a infância nos anos 80. Meu pai foi músico profissional. Começou a carreira nos anos 70 tocando contrabaixo em uma banda de rock e terminou em 2018 com câncer na laringe devido aos excessos. Viveu pela arte, morreu pela teimosia. Bandas como The Beatles, Led Zeppelin, The Who e Queen ajudaram a preencher parte significativa do repertório da minha imaginação musical e a contribuir com minha educação estética. Toda vez que visitei meu pai na adolescência — meus pais eram divorciados —, ele acendia um cigarro, pegava o violão e cantava Love of my life, de Freddie Mercury.

Sinceramente, não faço o tipo de fã fanático do Queen. Como confessei para meu cunhado depois de ter assistido a Bohemian Rhapsody: sou o tipo de fã nostálgico. A distinção não é gratuita, já que minhas exigências não serão afetadas por detalhes. Tenho meus motivos pessoais para ter gostado do filme, e o valor do ingresso não cobre — se bem que pagar R$ 63 em duas águas e dois pacotes pequenos de pipoca está fora do orçamento de um professor de Filosofia. Como meus amigos já tinham entrado na sala de cinema, sobrou pra mim a tarefa de encarar 22 minutos na fila da pipoca ouvindo conversas irrelevantes. Valeu esperar.

Por isso não me importo se o filme de Bryan Singer foi fiel ou não aos fatos. Se Bohemian Rhapsody tem seus defeitos, buracos no roteiro, não foi suficientemente documental ou deixou de aprofundar “temas sensíveis” (como detesto esse termo), deixarei para críticos, observadores e militantes das guerras culturais julgarem. A mim, modesto apreciador de domingo da Sétima Arte, convenceu; e por uma simples razão: a liberdade poética da narrativa construída para fãs nostálgicos da banda.

Bohemian Rhapsody é um filme feito sob medida para quem ouvia Queen numa fita cassete e se lamentou por não ter conseguido ver a banda em 85 no Rock in Rio. Eu tinha 7 anos — vamos dar um desconto para o “tiozão” — e lamentei não ter ido, por motivos óbvios. Mas todo mundo conhece alguém, nesta vida, que esteve no Rock in Rio em 85, repete isso em todo encontro de família no fim do ano e precisa pelo amor de Deus ir ver esse filme. Um tio, uma tia, um primo mais velho…

De qualquer maneira, ninguém precisa ser fã incondicional do Queen para apreciar a boa história contada no filme. Trata-se de um enredo, acima de tudo, sobre música sem as cafonices de um musical. E o ator Rami Malek (de quem a maioria das pessoas, exceto os fãs de BoJack Horseman, nunca tinha ouvido falar) deu um show. Eu fiquei confuso mesmo foi com Brian May, tenho certeza que era o próprio. Dizem que era um tal de Gwilym Lee; eu ainda duvido. Enfim, como eu estava dizendo, trata-se apenas de um relato da arte pela arte sem pedantismos e, principalmente, sem forçar a história da vida musical de Farrokh Bulsara, nascido em Zanzibar, 5 de setembro de 1946, a se encaixar nos atuais padrões de moralidade politicamente correta.

A narrativa explorada, que dá o bom arco à trama, tem dois pilares: o horror metafísico de Mercury preenchido por suas “experiências sexuais limites”, que infelizmente o conduzem à Aids, e o amor à música e à família, que o salva de seu vácuo existencial, típico de sua geração. Quem esperava algo sobre a difícil vida de um homossexual nos anos 80 e o preconceito em virtude da Aids sairá profundamente decepcionado. As boas performances dos atores entregam arte, no tom adequado da cultura pop, sem a necessidade de buscar justificativas políticas para valer o mecanismo de exploração do pipoqueiro. Ainda bem que Farrokh Bulsara não resolveu virar ativista e sufocar seu talento em ideologias.

Sem forçar demais, Bohemian Rhapsody é sobre nada mais nada menos do que música. Não é exigir demais de um filme com título de uma das canções mais marcantes da cultura pop do fim do século 20? Ser sobre música? Tal como o narrador de sua música, que vive as tensões entre realidade e ilusão e chega a mergulhar nas profundezas do inferno como aquele que deixa “todos para trás” para “encarar a verdade”, Mercury toma consciência de sua verdade como artista, filho e amigo, também depois de descer ao inferno da realidade e da solidão. Ao voltar — não vou dar spoiler —, ele exige nada além de se consolar no talento e na amizade. Portanto, também é um filme sobre amizade e família.

Afinal, se o artista sabe, já que sua trajetória e produção demonstra, que é um gênio da música, por que exploraria sua condição sexual e de saúde para exigir, politicamente, reconhecido da sociedade? O esgotamento de Freddie Mercury, bem explorado no filme, não é o nosso. Pois só em tempos sombrios é que o valor da arte deriva de exigências estranhas à arte. Por exemplo, usar de sua condição sexual para tirar vantagens de um mercado interessado em explorar esse tipo de sensibilidade ante o público — como acontece hoje em dia com a maior naturalidade. Submeter a qualidade artística a esse critério não passa de perversão estética e verdadeiro culto ao vazio. O cinismo da atual classe artística não tem limites.

Para encerrar minha sessão nostalgia, gostaria de dizer que Bohemian Rhapsody funciona muito bem em épocas de sentimentalismo tóxico para nos fazer lembrar de algumas verdades que não deveriam jamais ser esquecidas: mostra que os artistas são capazes de tomar para si o sofrimento como matéria prima e nele imprimir sentido. Lembrando sempre que o sofrimento será vivido como experiência íntima dentro dos limites da vida pessoal, mas que é capaz de deformar nossas relações. Quem aprendeu a se guiar na liberdade espiritual da vida interior sabe que anyway the wind blows.

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