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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Democracia domesticada

(Foto: Bigstock)

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Diferentemente do autoritarismo de Estado, um dos mecanismos fundamentais do exercício do poder totalitário é a necessidade da mobilização ideológica permanente para a submissão consentida de mentes cativas, que se entregam de corpo e alma ao engajamento tutelado numa democracia domesticada. O paradoxo é que muitos defensores de democracia liberal não percebem que estão atolados até a lama da barbárie totalitária. Trata-se de uma linha tênue.

No totalitarismo, a imagem do destino da totalidade vincula indivíduo no coletivo. Nesse sentido, não há fraturas entre as expectativas de quem manda e as frustrações de quem obedece; não há luta política entre senhor e escravo, para lembrar de Hegel; não há os dois desejos que dividem a cidade, para recorrer a Maquiavel. Tudo é um e o Estado aqui é inútil.

E em vista dessa unidade substantiva, a luta perpétua dos totalitários se traduz na necessidade de identificar e destruir inimigos, que do dia para a noite deixarão de ser considerados gente pelo militante virtual exercitando seu precioso senso de justiça.

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A experiência política democrática precisa incorporar em seu interior, para ser democrática num sentido genuinamente republicano, a dissidência e o contraditório. Pluralidade domesticada não é pluralidade. Não me refiro à anarquia, uma vez que o estado de anarquia, em que os homens perdem o senso de estabilidade, é facilmente transfigurado em autoritarismo. O medo e o desejo de paz impulsionam a necessidade humana de controle e segurança, demonstrava Hobbes já no século 17.

Institucionalmente falando, não vivemos num regime totalitário. A Constituição continua de pé, os três poderes estão divididos, as eleições acontecem periodicamente. Vivemos instituições democráticas. Entretanto, há uma novidade: o ambiente cada vez mais controlado das redes sociais, que são propriedades de grandes corporações. Não tenho problema com o capitalismo. A questão é política. No mundo virtual, o novo cidadão engajado mobiliza permanentemente os cativos para o exercício da identificação e destruição do inimigo. E quem é o totalitário e quem é o inimigo?

O mais surpreendente nessas novas formas de totalitarismo não institucional é que o agente da mobilização permanente não tem um rosto definido — podem chamá-lo de fascista, nazista ou extremista. Só não podem esconder o fato de que até o amante das ideais democráticos pode ser um cativo representante da política de mobilização e destruição.

O inimigo? Assim como não há um rosto que define o Grande Irmão, também não há um rosto que define o Grande Inimigo. Hoje, qualquer um pode se tornar o novo inimigo do dia. A vítima de ontem pode ser o carrasco de hoje — e vice e versa. Nada mais democrático do que todos serem amigos e inimigos permanentemente. E os canceladores de hoje facilmente se tornarão os cancelados de amanhã.

No totalitarismo, a imagem do destino da totalidade vincula indivíduo no coletivo. Nesse sentido, não há fraturas entre as expectativas de quem manda e as frustrações de quem obedece

O cientista político Sheldon Wolin — infelizmente sem obras traduzidas para o português —, em seu livro Democracia incorporada: democracia administrada e o espectro do totalitarismo invertido, demonstra que o totalitarismo invertido “não se manifesta por meio de um líder carismático e demagogo, mas por meio do anonimato sem rosto do estado corporativo”. Noutras palavras, não se perde a tutela de um Estado liberal e democrático, mas agora de uma democracia administrada. Na verdade, uma ditadura sob medida.

Afinal, quem é que de fato manda? O poder não tem rosto, vive-se a experiência como se ele fosse de todos. Diz Wolin: “o sistema do totalitarismo invertido evitará sempre as medidas duras e violentas de controle, desde que os dissidentes permaneçam impotentes. O governo não precisa acabar com eles. A uniformidade imposta à opinião pública por meio da mídia corporativa faz este serviço — de uma forma disfarçada e, por isso, bem mais eficiente”.

Wolin sustenta que, diferentemente dos regimes totalitários históricos e institucionalizados, em que a política era subordinada à vontade do líder carismático ou do partido único, no totalitarismo invertido a democracia é administrada por interesses econômicos de grandes corporações.

Aqui o poder se submete à economia: “a economia domina a política — e sob essa dominação surgem diferentes formas de maldade”. Por isso que, “ao invés de participar do poder, o cidadão virtual é convidado a ter ‘opiniões’, a dar respostas mensuráveis para questões previamente designadas para eles”. A democracia administrada necessita de cidadãos impotentes acreditando que estão participando ativamente da construção de um mundo melhor. Alguém lucra com isso, e não é a liberdade.

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