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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Democracia em ruínas

Protesto tem confusão entre PM e manifestantes na Av. Paulista (Foto: AFP)

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Não é segredo para nenhum dos meus estimados leitores o que penso a respeito do presidente Jair Messias Bolsonaro e da ideologia, um tanto quanto difusa, que sustenta suas decisões e lambanças públicas. Não, não sou comunista. Aliás, esse negócio de acusar de comunista quem não está com Bolsonaro é a mesma coisa que acusar de fascista quem não está contra Bolsonaro. Não, definitivamente, não sou comunista, policio-me constantemente para não ser um fascista e peço sempre ao bom Deus para não ser confundido com um liberal progressista. O palco político não se resume a esses três roteiros.

Hoje, com a consciência tranquila e sem muito esforço para reconhecer os erros políticos, faço parte daquele grupo de arrependidos que votou no 17como já expliquei nesta mesma coluna. No entanto, ressalto com franqueza e uma boa dose de ironia, tampouco estou com os que, movidos pela imoderada indignação ressentida, querem custe o que custar e usando de todos os meios necessários destituir o presidente eleito de seu cargo e, claro, mandar pro ostracismo da história todos aqueles que votaram no Bolsonaro, independentemente de terem revisto sua posição ou não.

Não, também não sou Antifa. E não sinalizo virtudes políticas para ninguém. Embora reconheça que não dá para pensar a democracia só em termos de quantidade e pragmatismo. Diferentemente do que o senso comum julga a respeito, democracia não é o poder da maioria exercido em dias de eleições. Instituições democráticas modernas não são validadas pela metade do corpo político + 1. Não é a tensão quantitativa que sustenta a ordem democrática, embora sua logística eleitoral possa dar essa impressão. Antes das urnas, o fundamento da democracia está enraizado na qualidade moral da comunidade política, o justo e delicado equilíbrio entre ethos e polis.

Longe de mim simpatizar com o estilo Bolsonaro de governar e o estilo bolsonaristas de bajular. A ideologia bolsonarista herdou o pior da vanguarda reacionária construída nos porões bolorentos do Curso Online de Filosofia (COF) de Olavo de Carvalho. De Filipe Martins, Allan dos Santos, Sara Winter, Bernardo Kuster, Azambuja e tutti quanti, a forma truculenta e paranoica desse governo e seus intelectuais orgânicos defenderem a nação expressa em definitivo o legado filosófico-político de Olavo de Carvalho. Não é consubstancial o homem e seu discurso filosófico?

Em 2009, ao lançar o seu COF, Olavo de Carvalho anunciara como sacrossanta missão que seus alunos formariam uma elite intelectual capaz de restaurar a alta cultura do país. Ora, ele cumpriu sua promessa restauradora: o sucesso de seu curso foi a construção dessa vanguarda intelectual que passa o dia na internet passando pano para o atual político de estimação.

Se a Filosofia — e aqui me refiro ao sentido em que a razão humana almeja sua mais alta vocação — liberta, que lugar ocupa Olavo de Carvalho no panteão dos grandes filósofos? Afinal, seu sucesso filosófico consiste na eloquente capacidade de seduzir as cabecinhas ocas e espiritualmente necessitadas de seus discípulos, que hoje formam o núcleo ideológico do bolsonarismo.

A personalidade autoritária do presidente Bolsonaro foi instrumentalizada pela vocação totalitária e doentia do carisma filosófico de Olavo de Carvalho. Em outras palavras: se o bolsonarismo é a forma do agir político, o olavismo fornece todo conteúdo ideológico. Um casamento perfeito em que os laços matrimoniais entre Bolsonaro e Olavo, isto é, entre o Político e o Filósofo, só podem gerar o servilismo político e a submissão intelectual como seus legítimos filhos.

De qualquer maneira, há certos limites que não se devem cruzar. Pode parecer uma petição de princípio o que vou dizer, mas o fato é que as instituições democráticas, com todos os seus pequenos defeitos e morosidade para satisfazer as urgentes demandas dos inconformados, só funcionam quando cada cidadão se entrega de corpo e alma para que as instituições funcionem. Quem deve derrubar o déspota é o poder da Constituição e não o poder da violência.

Por falar em romantizar a violência como demonstração de uma alma pronta para lutar pela tolerância, só é preciso cuidado para que no processo de destruição de ideias ruins não acabar destruindo as pessoas.

Cá entre nós, mesmo com os inesgotáveis esforços para se tentar compreender os motivos de as pessoas saírem às ruas propondo quebradeira em defesa da democracia, da paz e da tolerância, não dá para se iludir aqui não: a democracia não funciona se você assumir a quebradeira e a intolerância como instituição democrática. Todos os elementos constitutivos da ordem democrática se alimentam da lealdade moral aos princípios democráticos: pluralidade de ideias, humanização do adversário, responsabilidade cívica etc. Não tem outro jeito, pessoas ruins devem ser julgadas e punidas por tribunais instituídos e não pela horda de justiceiros tomados por paixões mobilizadoras.

Por isso, é preciso muito cuidado com as profecias autorrealizáveis. Por enquanto as instituições seguem — um tanto quanto capengas, mas seguem. Não há ruptura institucional — ainda. Bolsonaro transita no limite, força todos os limites. Só que há limites. Com o que há até agora, não dá para legitimar derrubá-lo na porrada. E se tem gente que acha que Bolsonaro deva sair pela força do fuzil e não pelo poder da toga, essa gente é feita da mesma matéria prima — uma substância espiritual que coloca em movimento o coração de todos os déspotas — que Roberto Jafferson e afins. Não se fundamenta regicídio com a possibilidade de uma democracia em ruínas.

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