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Democracia incomunicável
| Foto: Bigstock

Em última análise, toda decisão é moral e, ao mesmo tem, uma escolha privada. Se não houvesse vontade livre, se as pessoas não fossem livres para tomar decisões segundo a própria consciência, não haveria sentido falar em responsabilidades, ética e felicidade. Sem contar que qualquer debate sobre justiça seria irrelevante. Tudo seria obediência aos impulsos e gostos pessoais, inclusive nossos compromissos morais. Ora, nossos compromissos só são compromissos morais em virtude de sermos livres e conscientes para agir. Como diz William James, numa tirada que eu leio com certo humor contra o determinismo, “o meu primeiro ato de livre arbítrio será acreditar no livre arbítrio”.

Infelizmente, a noção de “escolha privada” no contexto do debate público do aborto — apenas para dar um exemplo de um debate que estou familiarizado — tem um valor semântico diverso do valor moral. A noção de “escolha privada” transformou a ideia de decisão moral referente ao aborto, e qualquer outro debate público, numa espécie de experiência pessoal de gosto. Tudo se tornou experiência pessoal, impressões subjetivas e palpite.

Exemplo: “Se você é contra o aborto, não aborte”. Essa sentença tem a mesma estrutura que esta: “Se você não gosta de carne, não coma”. Não se pode deduzir um imperativo categórico — um compromisso moral — da experiência pessoal de gosto: “Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através do teu gosto pessoal uma lei universal”. Se uma mulher — e seu parceiro — decide abortar por não desejar aquele filho, ela se compromete moralmente com um problema muito mais complicado do que a decisão pessoal de qual comida refogar e pôr no prato.

A noção de “escolha privada” transformou a ideia de decisão moral referente ao aborto, e qualquer outro debate público, numa espécie de experiência pessoal de gosto

Questões de gosto são muito mais flexíveis em termos de dar razões para os nossos compromissos. Ninguém exige ou oferece muita explicação quando se trata de manifestar uma opinião sobre preferir o sabor de um molho a outro. Por sua vez, crenças que motivam nossos compromissos morais são mais exigentes em termos de justificação racional.

É possível ser contra o aborto e prescindir de argumentos religiosos e morais. Mas dos argumentos morais, impossível. Por argumentos religiosos entendo a necessidade de buscar suporte nos textos sagrados para responder as demandas dos nossos compromissos morais. Pense na pergunta: “por que eu não posso matar meu vizinho?”. Eu daria uma infinidade de razões para não matar alguém que se não existisse eu me tornaria uma pessoa muita mais feliz: “não devo fazer isso, posso ir preso”, “todos têm o direito de viver”, “não tenho coragem” etc. Um argumento religioso, basicamente, diria: “não mate, a vida dele é tão sagrada quanto a sua. Isso é um pecado grave contra Deus”.

Tanto “sacralidade da vida” quanto “pecado” demandam de uma visão de mundo mais abrangente, uma visão que presume um entendimento acerca da relação entre Deus e homens. Nesse caso, nossos compromissos morais, em última instância, são compromissos com a nossa fé em Deus, uma relação profunda acerca do sentido último que damos a nossa existência.

Penso que as questões mais importantes da vida estão diretamente relacionadas com a forma como nos relacionamos com Deus. Para minha desgraça, meu vizinho não pensa assim. Ele não está nem aí pra Deus e para questões vitais. Agora se ele desejar me matar e não acredita em “sacralidade da vida” e “pecado”? Certamente, a vida dele seria mais significativa sem minha existência. Como resolver esse dilema se seu único compromisso moral é com os desejos? Meu vizinho está pouco se lixando para minha fé, minha consciência, meus valores morais.

Terei de negociar com ele. Nós nos odiamos e convivemos com relativa proximidade — diariamente. Como resolver? De saída, apelando para argumentos religiosos não vai rolar. Sem chance, esse é o preço do secularismo. Meus compromissos morais com Deus não formam uma base comum para negociar com meu vizinho descrente e moralmente comprometido apenas com sua felicidade. Portanto, é preciso encontrar uma base comum, um canal de diálogo. Em resumo, numa sociedade secularizada, esse terreno comum é o que chamamos de “Estado de direito”. No Estado de direito, leis fundamentais são evidentes para a razão.

Argumentos morais devem partir dessa base comum, independente dos nossos compromissos com uma religião específica. No entanto, disso não segue que a experiência religiosa tem a mesma estrutura que a experiência de gosto. Talvez um dia, mediante o exercício público da minha racionalidade, eu convença meu vizinho da grande importância de se acreditar em Deus, da sacralidade da vida e do pecado. Mas agora, infelizmente, essa não é a nossa base de diálogo. Nenhum acordo sairá daí. Temos interesses em viver e ser felizes segundo a régua que cada um determinou para si mesmo, como fundamento para uma democracia incomunicável.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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