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Em eleições para presidente, a narrativa criada pelos petistas é a de que só Lula, e mais ninguém, unificaria e pacificaria o país depois do pesadelo Bolsonaro. “União e reconstrução”, dizia o slogan de campanha. Nas redes sociais, a expressão “o amor venceu” inundou postagens de uma esquerda que não teme mais dizer o seu nome.
Depois da vitória petista, a expressão “o amor venceu” tem sido adotada para satirizar o método de perseguição, que não prescinde de apoio institucional, contra tudo aquilo que não é espelho da esquerda petista. Ciro Gomes que o diga. Durante a campanha, sua reputação foi devidamente destruída por tal amor reconciliador. Se são capazes de fazer isso com os amigos, imagine a disposição para redimir inimigos? O amor petista não abre mão da política como guerra por outros meios. Trata-se, como já escrevi aqui, de uma forma muito específica de democracia domesticada. Nada há mais ingênuo do que cair nesse tipo de retórica.
A paz imaginada pela atual esquerda no poder é uma paz que só faz sentido com a ideia de que o inimigo precisa ser identificado, perseguido e destruído. Infelizmente, essa forma de se fazer política não é privilégio da esquerda no poder. Entretanto, o que chama atenção nesta esquerda no poder é o caráter vingativo. A política como vingança não é novidade no mundo político. A novidade, no nosso contexto, é o apoio social, institucional e até midiático que esta esquerda recebe para identificar e caçar suas bruxas. Mesmo depois de derrotar Bolsonaro nas urnas, a impressão que fica é de que Lula não descansará enquanto não expurgar o país do bolsonarismo. O problema é o que ele entende por “bolsonarismo” e, a partir disso, o que estará disposto a fazer para destruí-lo.
Para ser democrática, a experiência política precisa incorporar em seu interior a dissidência e o contraditório. O bolsonarismo já foi vencido nas urnas. O que mais o petismo deseja? Minha pergunta aqui foi retórica. Eu sei o que o petismo deseja
Em recente pronunciamento durante o 59.º Congresso da União Nacional dos Estudantes, Lula afirmou que os presentes “conheceram em quatro anos o nazismo e o fascismo e viram como pode-se destruir a democracia neste período”. Não citou Bolsonaro, claro. O recado fora dado com clareza:
“Voltei à Presidência pela luta de vocês junto a mim, para recuperarmos este país. Vocês precisam compreender a importância da democracia. Vocês conheceram, em quatro anos, o nazismo e o fascismo. Viram como pode-se destruir a democracia em quatro anos. Aprendemos que a democracia pode não ser a coisa mais perfeita, mas não há nada como ela, em que podemos ver a pluralidade. É na democracia que vemos as manifestações. Voltaremos a fazer mais escolas técnicas, laboratoriais e universidade.”
Para ser democrática, a experiência política precisa incorporar em seu interior a dissidência e o contraditório. O bolsonarismo já foi vencido nas urnas. O que mais o petismo deseja? Minha pergunta aqui foi retórica. Eu sei o que o petismo deseja.
Recentemente, terminei de ler o excelente O império do politicamente correto, do filósofo canadense Mathieu Bock-Côté. Para termos uma visão mais ampla do que está acontecendo no mundo das ideologias, eu recomendo muito a obra. Nas últimas páginas, Bock-Côté traz uma visão muito boa a respeito do valor genuína da democracia. Reproduzo na íntegra:
“A democracia não poderia prescindir do conflito, mas deve civilizá-lo, a fim de torná-lo criativo. A conversa cívica não é uma simples discussão civilizada, e quem sonha em reduzi-la a isso quer na realidade torná-la asséptica. Alain Finkielkraut nos põe na pista correta: ‘deixei de conceber a política como um face a face entre a humanidade e seus inimigos’. Toda a genialidade da democracia liberal consiste em evitar a conversão do adversário em inimigo. Não se deve descartá-la, e sim restaurá-la. Seria preciso reaprender a refletir sobre um conflito político real, substancial, e até passional, mas emancipado do imaginário da guerra civil e capaz de levar os homens a prosseguir, apesar de tudo, a obra comum que torna possível a comunidade política.”
Na verdade, o maior risco para a democracia consiste em identificar adversários políticos como a encarnação do mal absoluto. No imaginário público, os termos “nazismo” e “fascismo” se referem à presença desse mal, e a banalização desses termos se presta justamente a esse propósito. Por esse aspecto, quando Lula ataca seus adversários como “fascistas” e “nazistas”, ele não defende a democracia – ao contrário, ajuda a intoxicá-la.