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Em linhas gerais, há duas formas básicas de conceber a experiência política: a primeira, mais evidente e imediata, diz respeito às relações de poder e a autonomia de governantes tomarem e imporem decisões coletivas; a segunda, mais abrangente e mediada pela reflexão, busca compreender o homem em sua dimensão social – como um todo. Em resumo: política como relação de poder ou política como vida na polis.
Essa discussão nunca escapou do radar dos clássicos do pensamento político. Na Grécia Clássica, o sofista Trasímaco – que Platão colocou no Livro I de sua República como antagonista de Sócrates – afirmava que “o justo não é nada mais do que o interesse do mais forte”. Ele repercute a ideia de que o arranjo legal de uma sociedade se impõe mediante aquilo que quem está no governo determina. Justiça vem do poder.
O justo se reduz à natureza de uma decisão; expressa a vontade de quem pode decidir. Nenhuma lei que garante o arranjo social em vista do bem comum está fundamentada fora dos limites da decisão da vontade de quem governa: nenhuma lei é divina ou natural. Em última instância, o governo é força. Por essa perspectiva, ética e política estão divorciadas. São ordens distintas e até irreconciliáveis.
Democracia é relação de poder ou política como vida na polis? Numa palavra: é forma de governo ou forma de sociedade?
Por outro lado, também existiu uma hercúlea tentativa de ancorar decisões políticas numa realidade para além dos limites da vontade do soberano. A política não seria o exercício do governo, pois não se reduziria enquanto poder da decisão; e a decisão, como expressão de força. Há uma realidade anterior capaz de limitar a ação dos governantes.
O fundamento da lei não é instituído pelas circunstâncias e os interesses de quem governa, mas por uma ordem superior que sustenta a própria natureza humana. Por “ordem superior” deve-se entender o fundamento que não seja dado pela própria imposição da vontade ou pela força de quem governa. O poder não fundamenta o exercício da decisão. Se assim se decide, é porque é justo; não é que algo seja justo porque assim se decide.
A democracia não está isenta de viver essa tensão em seu interior. Na verdade, ela traz essa tensão em seu próprio nome: democracia não é só “povo”, mas também “poder”. Cratos expressa o poder como força, como possibilidade de tomar decisões. Seria o poder da democracia só o exercício da vontade do povo, ou há uma ordem anterior que fundamenta a decisão coletiva? Democracia é relação de poder ou política como vida na polis? Numa palavra: é forma de governo ou forma de sociedade?
Entendo democracia primeiro como a forma da sociedade, porque entendo política não como relação de poder. E aqui procuro me alinhar a uma família de pensadores que vai de Aristóteles, para quem o desenvolvimento das virtudes éticas deve ser a antessala das virtudes políticas; passa por Tocqueville, que buscou o arranjo entre liberdade e igualdade a partir dos fundamentos cívicos da cultura democrática; e chega até mesmo a Claude Lefort, que entendeu a democracia como a única forma de criarmos convivência social à luz da noção de conflito.
Por isso, acho compreensível entender que o totalitarismo nasce da despolitização da sociedade, como bem demonstrou Luuk van Middelaar em seu livro Politicídio: o assassinato da política na filosofia francesa. Ele diz o seguinte: “A sociedade totalitária é a cabeça de Jano da democracia. Ela é um produto da mesma revolução democrática e surge quando o poder político democrático se retrai na sociedade, e em função disso a ilusão da unidade orgânica se revigora”. Afinal, continua Middelaar – e eu concordo com ele –, “a democracia é a única forma de convivência social a reconhecer o conflito social irrevogável que se encontra na base de qualquer sociedade. Mais do que isso: ela vive desse conflito. É sua fonte de energia e renovação. A conflituosidade da democracia não pode ser abolida, nem superada e tampouco eliminada. O ‘fim da história’ assim se torna impossível”.
A natureza do conflito no interior do espaço democrático precisa ser compreendida não como guerra de vida ou morte contra “inimigos” abstratos. Se sociedade civil precisa ser politizada, é politizada neste sentido: ser capaz de fornecer a própria forma social do conflito democrático. Isso significa que o adversário jamais pode ser esvaziado de sua dimensão política. Se a democracia é a virtude de saber “ouvir o outro lado”, o defensor da democracia não pode sistematicamente taxar o adversário como um inimigo sem destruir a própria vida da polis e, claro, correr o risco de destruir a vida dos outros.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos