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O maior desafio para quem pensa o problema da democracia é o de não projetar as próprias categorias mentais como espelho fiel da experiência democrática dos outros. Neste contexto, as distinções entre o campo teórico e o prático são decisivas para não cairmos na armadilha mental de achar que só a minha concepção teórica de democracia deve nortear a vida de todo o resto da humanidade, que milhares de pessoas trazem concepções teóricas e práticas distintas das minhas.
Ao longo da história brasileira, muitos teóricos tentaram dar uma resposta para o problema básico da nossa experiência enquanto nação. O tema do livro O Brasil à procura da democracia: da proclamação da República ao século 21 (1889-2018) é justamente o de demonstrar as várias caminhos em que se refletiu e viveu a democracia no Brasil. Como diz Newton Bignotto, seu autor, o livro tem como objetivo fazer o “percurso das ideias democráticas durante o período republicano”.
E é importante destacar que o recorte diz respeito exclusivamente às “ideias democráticas”, já que o tema do livro está nos “debates teóricos sobre a natureza dos regimes políticos, mas também nas representações do regime democrático, que influenciaram intelectuais brasileiros e também políticos e a imprensa geral”. Portanto, o tema central do livro é resgatar o debate brasileiro sobre a democracia.
Para Newton Bignotto, as manifestações de 2013 não indicariam a afirmação democrática no Brasil, mas o contrário
Newton Bignotto é guiado por autores considerados da “tradição republicana”, em particular Claude Lefort. Seu quadro de referência a respeito da democracia parte de uma afirmação de Tocqueville: a democracia como igualdade de condições entre os cidadãos. Porém, é em Claude Lefort que Bignotto busca seus conceitos-chave para pensar a democracia brasileira. Liberdade-igualdade (que ele trata como unidade conceitual); comunidade; autonomia; participação; e, por fim, a noção de conflito.
No conceito de comunidade, encontra-se o problema da “unidade da nação em torno de símbolos, ideias e instituições que apontam para a identidade do corpo político”; no conceito de autonomia se dá o tema da “autodeterminação no sentido de autogoverno do povo”; a participação é central para as matrizes teóricas republicanas na medida em que “indica as relações entre esfera da sociedade civil e do Estado”; já o conflito se refere propriamente à lógica do regime democrático que “acolhe o conflito em suas instituições em vez de escondê-lo ou negá-lo”.
O livro é um passeio crítico pelos principais momentos da democracia brasileira e seus grandes teóricos. A Primeira República (1889-1930) é descrita como “uma república sem democracia”; Na Era Vargas e na Segunda República (1930-1964), o Brasil caminha “em direção à modernidade democrática”; no período 1964-2010, o autor analisa “a ideia democrática da ditadura militar aos governos Lula” e fala em “era da esperança”. Por fim, de Dilma a Bolsonaro (2010-2018), “a crise da democracia brasileira no século 21” e “o destino de uma experiência de redução das desigualdades”.
O ponto forte do livro são as análises que Bignotto faz de diversos autores que pensaram a democracia brasileira. De autores como Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Oliveira Viana, Florestan Fernandes, Raymundo Faoro. Já o ponto mais fraco é o último capítulo, que ele mesmo reconhece a dificuldade de analisar, dado “o fato de que se trata de um processo em curso, que ainda não revelou seu completo significado e seus desdobramentos”.
As análises do cenário atual partem do conceito de “guerra de facções” na vida pública como uma das grandes ameaças à democracia. Bignotto se inspira aqui em James Madison, um dos grandes federalistas norte-americanos. Segundo Madison, a facção seria “um conjunto de cidadãos, quer formem uma maioria ou a minoria do todo, que são unidos e agem movidos por algum impulso comum da paixão ou pelo interesse contrário aos direitos dos outros cidadãos, ou o interesse constante e geral da comunidade”.
A tese central deste capítulo é mostrar que as manifestações de 2013 não indicariam a afirmação democrática no Brasil, mas o contrário. No seu modo de ver, “o período não foi da consolidação das instituições democráticas, mas o do seu enfraquecimento”, visto que “a natureza fragmentária das reivindicações migrou para a vida política e a contaminou”. Na ótica de Bignotto, “o resultado mais direto de 2013 foi o surgimento ou o fortalecimento de muitas facções que, tendo como guia seus interesses particulares, contestaram abertamente o poder”.
Infelizmente, os únicos exemplos que o autor usa para falar de “facções ideológicas”, que tentam “impor no Congresso” suas “reivindicações regressivas”, são retirados da direita e nunca da esquerda. Para Bignotto, o cenário político brasileiro teria mudado depois de 2013, porque diversos desses grupos, movimentos e partidos se tornaram “facções políticas”. Ao se comportarem como facções, esses grupos “não conseguem mais frear o ímpeto das partes que ambicionam o poder”.
Concordo com ele quando diz que há grupos de direita que se tornaram facções ideológicas, mas não dizer nenhuma palavra sobre os grupos de esquerda, como os Black Blocs, por exemplo, é negligenciar uma dimensão mais ampla do problema político no atual cenário brasileiro. Enfim, entre democracias e democracias, quem estaria à procura do Brasil?
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos