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Depois do carnaval, a ressaca. Depois da abundância, o deserto. Se bem que no Brasil, com essa chuvarada toda, a paisagem está mais para dilúvio. Mas não foi dessa vez. O mundo não acabou. Os sonhos utópicos de transformar o Brasil em uma nova Roma ainda prometem. Agora, o país que se orgulha de ser o maior país cristão se prepara para os 40 dias de deserto, não? Começamos bem o tempo da Quaresma com duas notícias apropriadas para essa data tão simbólica: um primeiro caso de coronavírus registrado e o presidente incitando os bajuladores de sempre para manifestação contra o Congresso.
Por falar em ironia, como escreveu meu amigo Martim Vasques da Cunha no seu perfil do Twitter, sugestão de leitura para os próximos dias após a pausa que foi o carnaval: Complô contra a América, de Philip Roth; A Peste, de Albert Camus. Confesso que ri. E um segundo depois lembrei da tragédia. Por isso aproveito a oportunidade de fazer a minha sugestão de leitura – bem mais melancólica – para a chegada do novo tempo litúrgico, Quarta-feira de cinzas, do T.S. Eliot.
De certa forma, o poema trata do ato de contrição. A contrição é, antes, a tomada de consciência de culpa. Mas culpa do quê? Não me refiro aqui à culpa no sentido de problemas sociais e políticos. O problema de misturar religião e política é justamente interpretar o político como um drama teológico e, ao fazer isso, reduzir a experiência da fé a um nutriente do exercício do poder. Um exemplo banal disso é a quantidade de perfis nas redes sociais que usam a declaração de fé cristã para interpretar o presidente da República como um mito redentor do país. Nada como “Deus vult!” deslocado de seu genuíno sentido religioso para sustentar os ataques ao Congresso. Antes fosse só uma crise estética.
O problema de misturar religião e política é justamente interpretar o político como um drama teológico e, ao fazer isso, reduzir a experiência da fé a um nutriente do exercício do poder
Volto a Eliot e o real sentido da contrição. Russell Kirk, ao comentar o poema de Eliot, escreve o seguinte: “Por intermédio da contrição, a culpa poderia ser purificada ou consumida pelo fogo. A ‘dúbia face de esperança e desespero’ poderia ser abandonada. O Verbo ainda poderia ser ouvido no mundo”. Vale a pena ler um trechinho do poema para lembrar que a doença que nos aflige é de outra natureza:
Rezará a irmã velada por aqueles
Que nas trevas caminham, que escolhem e depois te desafiam,
Dilacerados entre estação e estação, entre tempo e tempo, entre
Hora e hora, palavra e palavra, poder e poder, por aqueles
Que esperam na escuridão? Rezará a irmã velada
Pelas crianças no portão
Por aqueles que se querem imóveis e orar não podem:
Orai por aqueles que escolhem e desafiam
Todos os anos, quando chega o tempo da Quaresma, procuro meditar sobre Cristo no deserto. Porque é no deserto que Jesus sofreu as tentações cujo cerne é colocar Deus de lado e construir um mundo segundo pão, poder e glória. Ele podia fazer isso. Melhorar o mundo com autonomia e liberdade, resolver problemas urgentes que nos afligem. Estancar a dor dos aflitos. Se tem fome, pão. Se é Cristo, tem poder. Toda iniciativa recai, portanto, no próprio poder do homem. Deus nada além de uma ilusão. O desejo de poder político é a doença que Santo Agostinho chamava de amor sui. A mais perigosa das doenças, sem dúvida. Pois “dois amores fazem duas cidades: uma é terrestre, obra do amor de si até ao desprezo de Deus; a outra, celeste, obra do amor de Deus até ao desprezo de si”.
Não adianta a gente se fazer de vítima, se fantasiar de Cristo no carnaval a fim de imaginar que Jesus, um homem sábio, seria o maior exemplo de vítima para nossa causa política. Fácil botar uma fantasia e achar que a culpa é da sociedade. Fácil usar uma coroa de espinhos que não machuca e desconsiderar as tentações que Cristo sofreu no deserto, o flagelo e a morte de cruz, a descida ao inferno, a glória da ressurreição e, por fim, o anúncio de um Reino que não é deste mundo.
Os paladinos da justiça e do poder redentor querem um Jesus para chamar de seu, mas se esquecem – ou fingem esquecer – dos compromissos existenciais que a fé exige. Jesus não penetrou no drama da existência humana para se fazer de coitado perseguido. Ele foi ao fundo do poço para buscar a ovelha abandonada e não para reclamar que sofria de preconceito orquestrado por romanos e fariseus.
A imagem do deserto e as ofertas do demônio impõem recolhimento interior. Como diz Bento XVI em sua primeira parte da biografia de Jesus – Jesus de Nazaré –, “o recolhimento interior precede à ação, e este recolhimento também é necessariamente uma luta pela sua missão, uma luta contra as deturpações da missão que oferecem como suas reais realizações. A missão consiste em descer aos perigos do homem, porque só assim o homem caído pode ser levantado”. Nesse sentido, o deserto simboliza o lugar privilegiado de reconciliação.
Os paladinos da justiça e do poder redentor querem um Jesus para chamar de seu, mas se esquecem – ou fingem esquecer – dos compromissos existenciais que a fé exige
Obviamente, não sou Eliot, mas arrisquei uns versinhos para esta quarta-feira:
Qual o caminho de reconciliação
Senão o deserto?
No céu, o sol do meio dia.
Nenhuma sombra,
A pedra não é pão,
Pedro não é rei.
O mundo faz sua oferta:
Qual o caminho da reconciliação
Senão o deserto?
Bastava só uma palavra
Mas a iniciativa não pode ser minha.
O silêncio de Deus.