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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Aborto, eutanásia e drogas

Dignidade e democracia

Oposição ao aborto está longe de ser mera "questão religiosa", como afirmam falaciosamente os defensores da prática. (Foto: Reprodução redes sociais)

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Na semana passada, a Folha de S.Paulo publicou um editorial a respeito de seu posicionamento institucional sobre liberação das drogas, eutanásia e aborto. A princípio, não vejo problemas em um veículo da imprensa declarar suas convicções. Na verdade, é até muito importante para a democracia que o faça com transparência.

Se, em essência, a democracia é o poder da discussão, a transparência do jornalismo desempenha um papel fundamental na sua manutenção. Pessoalmente, acredito que os jornais não precisam ser imparciais. Ao contrário, eles devem ter o direito de tomar partido e se posicionar livremente no espaço público.

No entanto, o que me chamou a atenção no texto da posição da Folha foi este ponto: “A forte oposição na sociedade a essas pautas [...] não justifica o abandono do debate. As mesmas resistências, de origem em geral religiosa, foram vencidas mediante persistência e convencimento em outros países. Questões de fé são questões privadas; não deveriam interferir no que outras pessoas julgam ser o melhor para si. Eis um outro ensinamento iluminista que, aos poucos, há de prosperar no Brasil”.

A suposição de que a oposição a temas como aborto, eutanásia e uso de drogas se origina em convicções religiosas subestima os fundamentos éticos e filosóficos que sustentam essas posições. Ignorá-los é um reducionismo desrespeitoso

Isso é errado em inúmeros sentidos. Destacarei apenas alguns desses erros. Primeiramente, a suposição de que a oposição a temas como aborto, eutanásia e uso de drogas se origina em convicções religiosas subestima os fundamentos éticos e filosóficos que sustentam essas posições. Ignorar a quantidade de argumentos racionais, científicos e seculares contrários a essas práticas é, no mínimo, um reducionismo que chega a ser desrespeitoso com o debate público e a democracia.

Além disso, a afirmação de que “questões de fé são questões privadas” e não deveriam influenciar as escolhas públicas mostra um mal-entendido sobre o papel da religião e da moralidade na vida social. Tal visão ignora a realidade de que todas as crenças, sejam elas religiosas ou seculares, informam as visões de mundo dos indivíduos e, por extensão, suas perspectivas sobre políticas públicas. Assim, sugerir que apenas as crenças religiosas devem ser silenciadas no espaço público é promover um debate desigual e antidemocrático, no qual somente certos tipos de convicções (por exemplo, as convicções dos progressistas) são permitidos.

O pior é o apelo ao Iluminismo como justificativa para a secularização total do debate público. O Iluminismo, para ser preciso, com sua ênfase na razão, na ciência e no progresso, nunca defendeu a exclusão de perspectivas morais ou éticas da vida pública. Pelo contrário, muitos pensadores iluministas reconheciam a importância da religião e da moralidade na estruturação da sociedade e na promoção do bem comum. A propósito, muitos iluministas eram profundamente religiosos, como é o caso, por exemplo, do próprio Immanuel Kant.

Eu gostaria de contrastar essa posição da Folha com a da Gazeta do Povo, que sempre foi um jornal que não mede esforços para comunicar suas convicções. Para os propósitos desse texto, eu gostaria de destacar apenas duas convicções aqui da Gazeta que me chamam muita atenção e, confesso, me dão até um certo orgulho de ser colunista aqui já há quase dez anos. A primeira diz respeito à dignidade humana; a segunda diz respeito à compreensão de Estado laico. Vamos ler de perto a concepção de “dignidade humana” defendida aqui pelo nosso jornal:

“Cada pessoa, independentemente de qualquer outra característica inata ou comportamento que venha a adotar, tem uma dignidade intrínseca, que deriva do próprio fato de pertencer à espécie humana. Ela não é dada nem retirada por ninguém, nem pelo Estado, nem pela cultura, nem pelo consenso social. E não falamos da dignidade ‘da humanidade’ em geral, mas de cada indivíduo: único e irrepetível, do maior crápula ao maior herói, cada um é digno ao menos deste respeito que deriva do fato de ser humano.”

O conceito de “dignidade intrínseca” defendido aqui implica na noção de que o valor de uma pessoa não é condicionado por qualquer característica adquirida, como status social, realizações pessoais ou comportamento, mas sim pelo simples fato de ser humano. Nesse sentido, todos os indivíduos devem ser tratados em pé de igualdade moral fundamental.

Diferentemente da noção progressista, a postura equilibrada da relação entre fé e sociedade sustenta a relevância da experiência religiosa para as sociedades e não apenas limitada à vida dos indivíduos

Uma das implicações dessa concepção de dignidade é o posicionamento do jornal diante da questão do aborto, por exemplo. Por isso, a Gazeta do Povo é um dos raríssimos jornais brasileiros que declaram explicitamente sua posição contrária ao aborto. A posição é clara: “Dentre os seres humanos cuja dignidade é mais aviltada, o nascituro é o mais indefeso e inocente deles. É incapaz de fazer valer os seus direitos por si só, e por isso precisa de uma proteção ainda mais enfática da sociedade”. E o mais interessante é o reconhecimento de que essa posição não deriva de fundamentos religiosos, mas racionais: “a defesa da vida não é uma posição de cunho religioso; ela deriva das observações irrefutáveis da própria ciência, e da reflexão ético-filosófica”.

E mesmo se fosse de cunho religioso, qual seria o problema? A defesa do Estado laico tem justamente esse propósito: garantir que o Estado não interfira no fenômeno religioso. Como se posiciona a Gazeta do Povo, “O Estado não deve privilegiar nem coibir determinada religião em suas políticas públicas – mas deve, sim, garantir a liberdade religiosa e de culto, inclusive público”. Em outras palavras, a religião não pode ser reduzida à dimensão da vida privada. É preciso ter a coragem de reconhecer a dimensão pública da fé.

Diferentemente da noção progressista, a postura equilibrada da relação entre fé e sociedade sustenta a relevância da experiência religiosa para as sociedades e não apenas limitada à vida dos indivíduos. A Gazeta do Povo, ao articular suas convicções sobre a dignidade humana e o Estado laico, desafia o imaginário progressista a pensar para além de uma democracia domesticada.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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