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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Dilemas da modernidade

(Foto: Reprodução/Wikimedia Commons)

Historicamente, a modernidade produziu um dilema irreconciliável: ou o indivíduo se resolve cada vez mais para dentro de sua intimidade ou os indivíduos estão sujeitos à submissão do coletivo. Em termos de relações sociais, no primeiro caso, temos a hipertrofia da intimidade que leva à atrofia da experiência pública. No segundo, o processo se inverte: a hipertrofia do coletivo resulta na atrofia da intimidade. Esses se tornaram os únicos pontos de apoio possíveis para sustentar a alavanca do mundo. Estou usando “hipertrofia” e “atrofia” como metáforas para descrever um processo de desordem.

Para as exigências modernas, não há meio termo: ou se vive a tirania da intimidade ou a tirania do coletivo. O fato é que, se o indivíduo não se perder em si mesmo, cedo ou tarde será engolido pelo coletivo. Nesse caso, o jogo de soma zero faz bastante sentido. Resultado: desejo individual ou vontade geral como duas forças infalíveis em perpétuo conflito. Em 1940, o poeta W. H. Auden descreveu essa tensão da seguinte maneira: “Existem dois atlas: um, o espaço público onde os atos são realizados, em teoria comum a todos nós [...]. O outro é o espaço íntimo. De propriedade privada, o lugar que cada um é forçado a possuir”.

Numa linguagem político-teológica, eu resumiria assim: de um lado, portanto, temos o autoexílio gnóstico; doutro, o jacobinismo messiânico. Estou chamando de autoexílio gnóstico a postura de aprisionamento que o indivíduo faz dentro de si mesmo. Como ele imagina que a única referência de sua realização e verdade são seus próprios desejos, então, quanto mais se movimentar para a o espaço da vida íntima, mais encontrará sua verdade e mais será realizado. O individualismo moderno só poderia resultar numa forma de relativismo e revolta contra o mundo e contra todos.

O jacobinismo messiânico eleva a ideia de “público” a um patamar que só a lógica do terror poderia pôr em movimento

A consequência moral da lógica do autoexílio gnóstico não poderia ser outra que a complexa atitude de repulsa a qualquer concepção de ordem externa, numa extensão que cobre ordem metafísica, cultural, social e psicológica. Como não há verdade que não seja determinada exclusivamente pelo interesse de cada indivíduo em si mesmo, todas as instituições públicas são colocadas sob suspeita. Se Santo Agostinho encontra Deus no “mais profundo do que o que em mim existe de mais íntimo”, no processo moderno de emancipação, o indivíduo não encontra absolutamente nada ao encontrar a si mesmo. Junto com o progresso, o humanismo pariu o niilismo.

No outro extremo está o jacobinismo messiânico, que, ao contrário do autoexílio gnóstico, evoca a diluição do indivíduo na autodeterminação do coletivismo. O elemento que seduz todo trânsito da vida social não está na vocação para dentro da intimidade, mas para a externalidade. A experiência individual tende sempre à falência. O ponto de partida e chegada de toda ação social encontra no processo revolucionário seu motor imóvel. O polo privilegiado já não é mais o “eu” vazio de significado existencial, mas o “nós” cujo valor e sentido aponta para uma verdade universal. As categorias relativistas do individualismo são confrontadas com formas mais objetivas e expansivas de pensar e executar a ação política.

O jacobinismo messiânico eleva a ideia de “público” a um patamar que só a lógica do terror poderia pôr em movimento. Não há outra saída senão a instauração de um tribunal revolucionário como resultado de um raciocínio universal perfeito. Como a régua para medir toda vida pública é objetiva e universal, não há qualquer espaço para a vida privada. O terror invade cada brechinha da intimidade existencial. A destruição da vida íntima é a conclusão mais cristalina dessa mentalidade virtuosamente terrorista.

O individualismo moderno só poderia resultar numa forma de relativismo e revolta contra o mundo e contra todos

Como resume Robespierre: “Se a força moral do governo popular na paz é a virtude, a força moral do governo popular em revolução é ao mesmo tempo virtude e terror: a virtude, sem a qual o terror é funesto; o terror, sem o qual a virtude é impotente. O terror nada mais é que a justiça imediata, severa, inflexível. ele é, portanto, uma emanação da virtude. Mais que um princípio particular, é uma consequência do princípio geral da democracia aplicado às mais prementes necessidades da pátria”.

No fim, os extremos se encontram no mesmo horizonte de preocupação: o homem é para si o único deus. Karl Marx sintetiza o espírito da modernidade melhor do que qualquer outro autor: “o homem é, para o homem, o ser supremo”. Mas não lança críticas para negar o mundo moderno; muito pelo contrário, pois Marx pretendeu levar a lógica da modernidade às últimas consequências. Essa é a lição moderna por excelência: o mundo orbita em torno do ser absoluto: o homem – e de mais ninguém.

Curiosamente, as disputas ideológicas entre ser de direita ou de esquerda resultam desse dilema criado a partir da horizontalidade da experiência social do homem. As figuras da relação especial geralmente usadas para marcar o lugar no mundo – estar posicionado mais à direita, no centro ou mais à esquerda – se limitam a descrever posições em um espectro planificado. Jamais em termos de verticalidade, alto ou baixo – que foram tão caros à tradição platônica, por exemplo. As noções de verticalidade foram completamente destruídas pela revolta desse pequeno deus chamado homem.

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