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Durante meu processo pessoal de luto, assisti à aclamada série Disclaimer, que chegou com um elenco de peso e uma boa direção que logo a colocaram no radar das produções mais comentadas de 2024. A relação que desenvolvi com a história e as escolhas do roteiro foi, no mínimo, ambígua. Não sei se gostei tanto quanto fui levado a acreditar que deveria. O que posso dizer é que a série não deveria ser desprezada.
A narrativa de Disclaimer é construída de forma não linear e alterna entre momentos de férias em Veneza, onde a jovem Catherine conhece Jonathan e onde ele acaba morrendo afogado, e o retorno a Londres 20 anos depois, quando a verdade começa a vir à tona, a partir de Stephen Brigstocke, pai de Jonathan, que resolveu se vingar da morte do filho.
A série usa uma forma bem interessante de narração. São dois narradores para cada personagem. Eles não são narradores confiáveis, o que aumenta ainda mais o suspense psicológico. Os acontecimentos são apresentados sob duas perspectivas: primeiro, de maneira especulativa, através do ponto de vista de Nancy; depois, pela versão de Catherine, que os viveu em primeira pessoa. Essa estrutura abre espaço para reflexões sobre como as histórias são construídas e o que é deixado de fora.
A série usa uma forma bem interessante de narração. São dois narradores para cada personagem. Eles não são narradores confiáveis, o que aumenta ainda mais o suspense psicológico
Cate Blanchett dá vida à jornalista e documentarista premiada Catherine Ravenscroft, enquanto Kevin Kline interpreta Stephen Brigstocke, um homem devastado pelo luto e pelo desejo de vingança. A fotografia explora paisagens como os canais de Veneza e ambientes interiores que refletem a claustrofobia emocional dos personagens. A narrativa usa flashbacks e cenas não lineares para construir a trama. Tudo isso nos prende uma rede de tensões emocionais, suspenses e até certos momentos patéticos da vida doméstica dos personagens.
Baseada no romance de Renée Knight, a trama de Disclaimer gira em torno de um livro misterioso que aparece na casa de Catherine e expõe um segredo que ela manteve escondido por toda a sua vida. É uma história que coloca o problema da verdade no centro da discussão, e justamente por isso gostei da série, mas também me deparei com escolhas que me decepcionaram.
Jonathan Brigstocke, o filho de Stephen, aparece pela primeira vez em Veneza. Ele está acompanhado pela namorada, uma jovem animada com quem compartilha momentos descontraídos, cheios de piadas e cumplicidade sexual. Mas, repentinamente, ela desaparece da história. A viagem, que parecia um prelúdio para conhecermos mais sobre Jonathan, se torna apenas um registro perdido de sua juventude. Não sabemos muito bem por que ela vai embora nem o impacto que isso teve nele. A narrativa, ao saltar de Veneza para o luto de Stephen, deixa de lado detalhes que poderiam dar mais densidade ao personagem.
O foco, então, se volta para Stephen. Sua esposa morreu e seu filho, Jonathan, também. Ele era um velho professor cansado da sala de aula. Na tentativa de encontrar vingança, ele publica um livro, escrito pela esposa (Nancy Brigstocke), que acusa Catherine de ser responsável pela tragédia de Jonathan. A obra é enviada a jornalistas; ao marido de Catherine (interpretado por Sacha Baron Cohen), Robert Ravenscroft; e a seu filho, Nicholas Ravenscroft, um jovem fracassado e viciado em drogas. Além do livro, fotos sensuais de Catherine também são enviadas ao marido. É assim que Stephen quer se vingar. Destruir a carreira, o casamento e o filho de Catherine. Noutras palavras, destruir tudo o que ela ama.
Tentarei não dar spoilers. Então, já antecipo minhas desculpas se revelar demais. Pensei muito nos possíveis furos da história e tudo o que me fez questionar a qualidade da série. Tudo que segue aqui é minha opinião. É a forma como eu interpreto o problema central da série. A começar pelo que significa o termo disclaimer, de difícil tradução. A palavra, no geral, significa “isenção de responsabilidade”.
No contexto da história, a palavra disclaimer faz referência ao esforço de Catherine em justificar suas ações passadas. Ela assume parcialmente a responsabilidade ou, mais do que isso, pode ter distorcido a narrativa para aliviar sua culpa. É como se ela colocasse um “disclaimer” sobre seu próprio passado, dizendo: “Esta é a minha versão dos fatos, mas você decide no que acreditar”. O desfecho é o confronto de Catherine com Stephen, que está a um passo de matar o filho dela.
O enredo coloca o problema da verdade no centro da discussão, e justamente por isso gostei da série, mas também me deparei com escolhas que me decepcionaram
Para mim, o grande tema da série é o quão manipulável é a verdade e como os relatos apresentados podem ser incompletos ou enviesados. Nesse sentido, o título deve ser lido como uma advertência para o espectador: “o que você vê ou ouve talvez não seja a verdade plena, mas um fragmento”. E aqui está um ponto crucial: o relato de Catherine a Stephen é o suficiente para a fundamentação objetiva dos fatos? Isso me incomodou bastante, pois na reconstrução encontrei vários furos que não seria problema para um investigador novato levantar.
Catherine relata que o filho de Stephen a teria violentado sexualmente em Veneza. Ou seja, ela é alguém que carrega o peso de um trauma escondido. No entanto, sua profissão – e sua habilidade de controlar narrativas – abre espaço para uma dúvida: e se ela estivesse “editando” a sua versão dos eventos para justificar seus próprios atos? O trabalho de um documentarista é, afinal, uma prática de seleção: o que incluir, o que omitir, como organizar os elementos para criar uma história coesa. Portanto, a série nos leva a um terreno delicado, onde o relato de uma mulher supostamente violentada é a única base para legitimar sua versão dos fatos.
O grande tema de “Disclaimer” é o quão manipulável é a verdade e como os relatos apresentados podem ser incompletos ou enviesados
E aqui reside um dos pontos mais problemáticos da série: é suficiente o testemunho de alguém para afirmar a verdade? Em tempos em que movimentos como #MeToo colocaram a questão da credibilidade das vítimas em primeiro plano, Disclaimer pode funcionar como um convite à reflexão a respeito desse tipo de denúncia. Não como uma forma de desacreditar essas vozes, pelo contrário, mas para questionar como qualquer narrativa, por mais sincera que pareça, não está isenta de subjetividade e manipulação. Não estou dizendo que a protagonista é uma manipuladora. Afinal, ela pretende salvar o casamento e o filho.
O relato de Catherine pode ser legítimo em sua dor e em sua perspectiva, mas a série habilmente insinua que sua versão é apenas isso: uma versão. Ora, Catherine nunca é confrontada diretamente por outras narrativas que poderiam equilibrar o quadro. Jonathan está morto, Stephen está cego pelo luto e pelo desejo de vingança, e o filho de Catherine, uma possível testemunha, está em coma por causa das drogas. O que resta é a palavra de Catherine. Ela é suficiente? Tenho minhas dúvidas, e acho que esse era o objetivo do roteiro. Talvez esse seja seu maior mérito: obrigar-nos a olhar além das narrativas prontas e refletir sobre como construímos, aceitamos ou questionamos as verdades que nos são apresentadas.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos