Embora eu discorde, já quero deixar isso bem claro, há uma relação entre terrorismo e banditismo. Para entender o que isso significa, recorrerei às noções modernas de guerra irregular e guerra total. Terrorismo e banditismo são duas formas de violência, de fato. Porém, cada uma se legitima à sua maneira. De qualquer modo, não dá para não pensar no que o culto ao banditismo seguido à demonização da Polícia Militar – por uma parte significativa da esquerda – representa politicamente.
De certo modo, a política pode ser compreendida como um tipo de ação para alcançar o poder como fim. E o poder, em sua forma pura, significa a capacidade de fazer um comando se tornar obediência. Ou seja, o poder é o exercício da vontade sobre outro. Noutros termos, uma relação de força. Em essência, a violência constitui um tipo de poder. Mas nem todo poder se reduz à violência. E nem todo poder representa a política.
A ação de um bandido é um exercício de poder puro. O poder, quando legítimo, tem limites demarcados pela lei; o poder do banditismo não. Em sua essência, o Estado, por exemplo, constitui uma forma legítima do uso da violência, como explicou Max Weber em sua teoria da dominação. A ação criminosa de bandidos deveria ser uma quebra na relação de confiança dos cidadãos perante a lei dentro dos limites territoriais do Estado. Noutras palavras, o policial armado é, em essência legal, distinto de um assaltante armado. O problema está na ideia de arbitrariedade da violência. De um policial deveríamos esperar a ação que está inscrita na lei; de um criminoso, podemos esperar qualquer coisa.
A ação de um bandido é um exercício de poder puro
Vamos pensar no terrorismo. Terrorismo, como ação violenta, consiste em um subtópico da guerra irregular (assistam a Lawrence da Arábia, o clássico que conta parte da história da vida de T. E. Lawrence, um dos maiores criadores da guerra irregular moderna). A guerra irregular é uma forma de conflito que leva em consideração o acaso, a surpresa e a quebra do padrão de comportamento. Trata-se da guerra de quem domina a “lógica” da imprevisibilidade diante de um poder estabelecido. Apresenta-se como resistência contra a opressão de um “sistema”, ou seja, de um Estado constituído pelo exercício da força.
Nesse caso, não se trata de uma guerra de igual para igual em termos de poder bélico, de um exército profissional contra outro exército profissional. O maior desafio das guerras irregulares está no fato de que qualquer civil pode ser um “combatente” em potencial, portanto. No caso da força policial do Estado, a farda representa o símbolo de uma violência que deve atuar apenas nos limites da lei. Ela precisa transmitir a confiabilidade institucional do poder de força.
O terrorismo é o método da guerra irregular. Ao se valer da imprevisibilidade e da surpresa, um terrorista, que luta uma guerra irregular, busca desestabilizar não apenas a ordem física, mas sobretudo a ordem psicológica e social de uma população ou governo. Essa tática enfatiza a psicologia da guerra tanto quanto a sua execução física. T. E. Lawrence, em suas campanhas no deserto durante a Revolta Árabe contra o Império Otomano na Primeira Guerra Mundial, mostrou que, ao afetar a percepção do inimigo e desorientar seus cálculos estratégicos, uma força numericamente inferior pode superar adversários bem mais equipados e preparados. Assim, o terrorismo se assemelha mais a uma guerra de desgaste psicológico e de recursos do que a confrontos direitos. E precisa ser entendido como o extremo oposto da guerra total.
O grande arquiteto da guerra total foi Napoleão Bonaparte. Para se ter uma ideia, Napoleão foi o responsável por integrar o militarismo ao Estado-nação moderno como um dos elementos mais decisivos na condução da guerra. O surgimento do militar como braço do Estado moderno vem daí. A ação militar representa a própria estrutura opressora do Estado-nação moderno. Uma questão interessante é que a Polícia Militar é uma parte significativa da própria força do Estado. Trata-se, na verdade, de forma “doméstica” do exercício da força, isto é, uma forma que deve atuar apenas do lado de dentro das fronteiras e garantir a segurança dos principais agentes do Estado: o cidadão.
Mas por que a esquerda demoniza a Polícia Militar e ao mesmo tempo faz o elogio do banditismo? Essa é uma questão complicada e aqui quero dar um palpite.
Para a esquerda, o banditismo também provoca mudanças sociais ou políticas por meio do medo, da coerção e da imprevisibilidade
Primeiro, precisamos deixar de lado a ideia de que para a esquerda o banditismo busca apenas ganhos materiais ou pessoais restritos à vida privada – por exemplo, tomar o celular de alguém na rua para trocar por pedra de crack. Mais do que isso: para a esquerda, o banditismo também provoca mudanças sociais ou políticas por meio do medo, da coerção e da imprevisibilidade. Se o terrorismo tende a ser motivado por objetivos ideológicos, o banditismo atua como uma forma de privatizar a ação da guerra irregular. O mito do banditismo nasce diante da ideia de que não precisamos mais estar vivendo um estado de guerra, basta viver um estado de opressão.
A convocação e justificativa do banditismo se dá pelo seguinte fato: se o cidadão não está ideologicamente comprometido e domesticado segundo os critérios da esquerda, logo ele é um agente opressor do Estado. No contexto da guerra irregular, os “combatentes” desafiam o monopólio de um sistema opressor de violência. E o bandido não é outra coisa a não ser esse combatente, que nem precisa ser ideologicamente comprometido, basta apenas representar a desestabilização do Estado opressor. Eles não precisam reivindicar uma forma de legitimidade para sua própria ação.
Nesse caso, a legitimidade não está expressa na luta irregular contra o Estado total, mas se sustenta pelo apoio da classe intelectual, que já não precisa pegar em armas para fazer a revolução. Enquanto o intelectual desfila na escola de samba e o bandido comum passa a ser o novo agente revolucionário, a polícia só pode ser o demônio.