Na semana passada, escrevi um texto sobre o fundamento da liberdade segundo a Doutrina Social da Igreja. O núcleo do texto sustentava o seguinte: Filosoficamente, a ética cristã católica é objetiva, em que o bem e o mal são realidades reconhecíveis pela razão humana mediante a consciência. A consciência é vista não como um simples arbítrio individual, mas como um juiz que deve ser educado e iluminado pela verdade. Portanto, para a Igreja Católica, a ética está fundamentada em um tipo muito específico de verdade, isto é, defende uma moral objetiva.
Para minha surpresa, recebi a seguinte crítica de um leitor, que gostaria de compartilhar na íntegra com vocês:
“Quanta ginástica mental para inserir a ‘objetividade’ (entenda-se deus) na moralidade humana. Não há moral objetiva. E se houver, certamente ela não é derivada de qualquer religião, muito menos as baseadas na bíblia, que endossa a escravidão, o genocídio, a inferioridade da mulher em relação ao homem etc.”
Pessoalmente, gosto desse tipo de crítica. Afinal, ela permite o refinamento das nossas posições. Em outras palavras, uma crítica nos desafia a examinar e defender nossos pontos de vista com mais rigor, além de proporcionar a oportunidade de esclarecer mal-entendidos e apresentar uma compreensão mais precisa da tradição ética e social cristã católica. Não preciso dizer que eu discordo do comentário. Porém, o que me interessa é dizer por quê discordo.
A crítica aponta para um entendimento totalmente equivocado sobre a objetividade da moralidade na ética cristã católica. Primeiro, a objetividade moral, conforme ensinada pela Doutrina Social da Igreja, não se baseia apenas em textos bíblicos isolados, mas em uma tradição filosófica e teológica que considera a dignidade humana, a justiça e a verdade como princípios universais reconhecíveis pela razão. Além disso, afirmar que a Bíblia “endossa a escravidão, o genocídio, a inferioridade da mulher em relação ao homem etc.” é de uma simplificação constrangedora que ignora a complexidade e a diversidade dos textos bíblicos, bem como a evolução de sua interpretação ao longo dos séculos.
Do ponto de vista da Doutrina Social da Igreja, posso garantir o seguinte: ela evoluiu ao longo dos séculos, reinterpretando textos à luz do entendimento crescente dos direitos humanos e da igualdade. E por evolução, aqui, digo que sempre esteve atenta às demandas e dilemas de seu tempo.
Enquanto algumas passagens bíblicas refletem contextos históricos específicos, a interpretação da Igreja Católica enfatiza a defesa da dignidade da pessoa humana e a promoção da justiça social – obviamente não secularizada por teorias críticas modernas. Nesse sentido, o autor da crítica ignora essa evolução interpretativa e a complexidade do pensamento ético cristão, que não se limita a uma leitura literal e limitada do texto bíblico, mas busca fundamentos racionais e universais para a moralidade objetiva. Gostaria de lembrar alguns exemplos:
Filósofos como Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino foram fundamentais na tradição ética cristã, integrando princípios bíblicos com filosofia greco-romana. Agostinho destacou a moralidade baseada na vontade divina, enquanto Tomás de Aquino sistematizou a ética natural, harmonizando fé e razão. Ambos influenciaram profundamente a teologia moral cristã para além de uma leitura literal de passagens bíblicas. No mundo moderno, filósofos como Jacques Maritain e Alasdair MacIntyre continuaram essa tradição. Maritain defendeu a dignidade humana e os direitos naturais, influenciando a Declaração Universal dos Direitos Humanos. MacIntyre, em After Virtue, criticou a fragmentação moral da modernidade e resgatou a ética das virtudes de Aristóteles e Tomás de Aquino.
Não posso esquecer da contribuição das mulheres. Elizabeth Anscombe, por exemplo, foi uma das mais importantes filósofas católicas do século 20. Em sua obra Intention, ela revitalizou a ética das virtudes e criticou o consequencialismo, argumentando pela importância das intenções morais.
Edith Stein, conhecida como Santa Teresa Benedita da Cruz, combinou filosofia fenomenológica com teologia cristã, explorando profundamente a dignidade humana e a ética da empatia. Stein, uma judia convertida ao catolicismo, escreveu obras influentes como Ser Finito e Ser Eterno e A Estrutura da Pessoa Humana, abordando questões de identidade, feminilidade e espiritualidade. Sua vida teve um fim trágico; durante a Segunda Guerra Mundial, por causa de sua origem judaica, foi presa pelos nazistas e deportada para o campo de concentração de Auschwitz, onde foi morta em 1942. Sua morte testemunha sua coragem e dedicação aos seus princípios, tornando-se uma mártir da fé e uma inspiração para muitos cristãos católicos e não católicos.
Enfim, na próxima semana, gostaria de apresentar um ponto mais elaborado sobre a crítica à moral objetiva. Uma coisa é certa: a Bíblia jamais endossou a escravidão; pelo contrário, busca libertar o homem da pior das prisões, o pecado.
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