Considero absurdo qualquer tipo de projeto de lei que dê direitos a alunos filmarem seus professores em sala de aula com a finalidade de combater doutrinação ideológica. Não importa as desculpas — e eles dão muitas —, o fato é o seguinte: num evidente ato de revanche, o objetivo desse tipo de proposta é criar uma rede de perseguição ao professor de esquerda a partir de um clima de ameaça, policiamento, exposição pública e humilhação. Como diz o filósofo Nassin Taleb: “Hoje, desconhecidos, incapazes de julgar o caráter de uma pessoa, tornaram-se autointitulados policiais do bom comportamento. A perseguição e a humilhação online são muito mais poderosas do que as antigas manchas de reputação”. Isso para não falar do processo de criminalização de um ato pedagógico cujos limites legais e criminais não são nada óbvios.
Antes de atiraram a primeira pedra e me acusarem de “comunista”, quero contar um pouco da minha trajetória profissional. Há 20 anos trabalho com educação. Sou professor de Filosofia, Sociologia e História da Arte. Cheguei a lecionar por um breve período Literatura e Ensino Religioso. Dei aulas em escolas públicas e privadas; trabalhei na zona rural, na periferia e nas áreas urbanas de grandes cidades; fui professor de aluno muito rico, rico, pouco rico, pobre e muito pobre; crianças, jovens e adultos; Ensino Fundamental, Médio, Técnico e Faculdade; cheguei a trabalhar como coordenador durante 2 anos; garanto para vocês que não sou um burocrata engravatado olhando para abstrações sociológicas. Obviamente, reconheço que a minha experiência de vida profissional é a minha experiência, a minha história, o meu contexto, o meu recorte da realidade, mas se trata da experiência de alguém que arriscou a própria pele e a metade da vida para ensinar.
Por isso, insisto: gravar aulas com a finalidade — destaco a palavra para alertar que não sou contra gravar aula com o consentimento do professor como material de estudo — de combater doutrinação ideológica é uma aberração ideológica, um caso limite que não se ultrapassa.
Pessoalmente, já fui simpático ao Escola Sem Partido. Cheguei a ter textos publicados no site oficial do movimento. Na ocasião, denunciava o material das disciplinas de Filosofia e Sociologia que estavam sendo usados pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Porém, vale registrar: fui simpático enquanto se tratava de um movimento da sociedade civil empenhado em auxiliar famílias a identificarem e lidarem com possíveis focos de doutrinação em sala de aula. Porque na qualidade de movimento social, pelo menos três pontos positivos o Escola Sem Partido trouxe: primeiro, ter levantado a discussão sobre o estado atual da educação brasileira; segundo, questionar a difícil distinção entre “neutralidade do Estado” e “pluralidade do ensino”; e, por fim, o ponto mais louvável, inspirou famílias a se preocuparem com o conteúdo ideológico.
Mas tudo tem limite. E o limite para o Escola Sem Partido era justamente o de não tomar partido como um movimento declaradamente de perseguição ao professor de esquerda. Atualmente, o movimento se aproveita do clima político do país, da ascensão da direita ao poder, para tentar se consagrar como projeto de lei. Olha, sinceramente, se o poder corrompe, o caso desse movimento é emblemático. Usar o poder coercitivo do Estado para levar adiante um projeto de lei cuja eficácia para ensino não será outro senão o de criar um clima generalizado de perseguição contra adversários ideológicos é a fronteira que não se podia atravessar.
O movimento Escola Sem Partido disponibiliza em seu site o modelo de “petição para garantir o direito de gravar aulas”. Segundo o texto de apresentação: “Já que o Ministério Público não faz nada — isto quando não advoga indecentemente para o outro lado —, o ESP decidiu fazer alguma coisa pelas vítimas dos abusos praticados por militantes disfarçados de professores”. O modelo da petição “visa a contribuir com o trabalho dos advogados na defesa do direito de estudantes e pais de gravar as aulas ministradas nas escolas públicas e particulares”. Sério, fico me questionando o que o Ministério Público tem a ver com isso? É inacreditável considerar os casos performáticos de doutrinação um assunto que deveria ser resolvido pelo Ministério Público.
Que tipo de “direito” é esse que em vez de preservar tende a demolir a relação professor-aluno? Para quem passou anos de sua vida dentro de uma escola, posso garantir: o cimento da relação professor-aluno é a lealdade, a cumplicidade e a liberdade. Não o clima generalizado de desconfiança, ameaça e perseguição. Tanto o professor como os alunos não são ilhas isoladas dentro de uma escola, que tampouco é uma ilha isolada na sociedade civil. Transformar o professor esquerdista em caso para o Ministério Público resolver é o tipo de atalho que não se pega. Apelar para o controle do Estado policialesco como solução para o problema é amputar a própria relação entre escola e famílias. Além disso, é, na verdade, destruir o que dá consistência à soberania da sociedade civil para se impor como Estado.
A relação professor-aluno não deve ser mediada pelo poder público antes de ser mediada por todas as instâncias da relação escola-família. A escola é uma instituição viva — com professores, alunos, coordenadores, direção, mantenedores, diretorias regionais de ensino — que lida diretamente com famílias, e não com indivíduos isolados na incapacidade de lidar com seus problemas. Existe a relação entre pais e diretor; entre diretor e professores e coordenação; a relação entre as próprias famílias. A educação não se resume na relação aluno — vítima isolada, a presa fácil — e professor — predador, o molestador de vítimas inocentes. Essa falsificação de todo ato pedagógico serve a um propósito: mediar esse suposto microconflito com aparato policial do Estado, que hoje é de “direita”.
O espaço escolar, que é o espaço de aprendizagem, deve ser consagrado como espaço de liberdade, de reflexão e de lealdade. A escola é instituição mais soberana em termos de liberdade do que o Estado. O único caminho seguro para combater o professor doutrinador é por meio de uma rede consistente de formação, de diálogo entre famílias, entre alunos, enfim, do estímulo substancial da liberdade, da linguagem racional e pluralidade de ideais. É preciso despertar nos alunos a capacidade de lidar, eles mesmos, com o professor doutrinador. Se o Escola Sem Partido for realmente por esse caminho, a único resultado que veremos é o de um bando de estudantes mimados achando que só o seu político de estimação salva.