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É só uma guerra pela civilização

Imagem: Reprodução (Foto: )

Um dos meus maiores interesses intelectuais e motivo de crises morais é compreender a relação entre violência, política e religião. Dá para passar o resto da vida estudando o sagrado ato político de perseguir adversários em nome do bem, da verdade e da justiça. Há algum tempo reflito sobre isso; chamei a disposição para esse tipo de violência político-religiosa de “imaginação totalitária” a fim de entender os possíveis perigos da política como esperança: relação entre crer, purificar e destruir.

Embora tudo tenha começado com a deformação dos desejos antes de se efetivar como escolha, é fato constrangedor que o século 20 foi recheado de tentativas — em certos contextos até bem-sucedidas — de se instaurar regimes políticos conhecidos como “totalitários” cujos efeitos colaterais foram a sistematização e a industrialização de assassinatos em massa. Milhões de pessoas morreram como “solução final” para a decadência.

Vencer a decadência e a degeneração era lutar “a guerra que acabaria de uma vez com todas as guerras”. Muitos intelectuais foram seduzidos pelas promessas de final feliz da história e buscaram justificar filosoficamente a realização de sociedades perfeitas e autossuficientes com homens perfeitos e autossuficientes. O terror valaria a pena por causa daquilo em que se acreditava. Mais do que de memória, trata-se de expectativas que desatavam os vínculos morais entre o mundo que temos e o mundo que desejamos, entre a realidade e a fantasia.

Em geral, a sedução tem origem na equivocada imagem a respeito do que é o ser humano e, consequentemente, de como a verdadeira sociedade deve ser planejada, organizada e modelada por quaisquer meios necessários. A perseguição e a destruição dos inimigos não são nada mais do que meros instrumentos para se “fazer tábula rasa da história e arrancar o mal pela raiz”. É, pois, não um dilema ético, mas um problema de logística, pura matemática e triunfo da vontade.

Sinceramente, meu maior conflito pessoal ao estudar os fundamentos mentais dos regimes totalitários é o de saber se eu teria sido capaz de resistir à tentação. Tenho cá minhas dúvidas; sei das minhas fraquezas e extrema boa vontade. É muito nobre estimar a si mesmo como digno de grandes virtudes, senso de justiça e façanhas políticas: “eu jamais cairia nesse papo furado. Fracos são os outros” — não é o tipo de frase que eu negligenciaria. Sou do tipo que não duvido do que eu mesmo sou capaz. Nunca se sabe.

Pois bem. Quem nunca estimou a si mesmo que atire a primeira pedra. Os arquitetos dos regimes totalitários não duvidam de suas capacidades civilizacionais. Eram homens cultos, extremamente civilizados, amantes da arte, da literatura, da música, enfim, homens da alta cultura. Força de vontade, entusiasmo ético e profundo senso de responsabilidade, que beirava a experiência religiosa, guiavam cada passo dessas pessoas tomadas de convicção. Sabiam o que queriam e sabiam mais ainda o que atrapalhavam o caminho. Para quem domina a arte de estimar a si mesmo, a primeira lição é determinar quem são os nossos verdadeiros inimigos.

Este professor de liceu, veterano de movimentos de juventude ligados ao nazismo, envia uma carta à sua mãe: “Querida mãe, sinto-me na obrigação de escrever uma carta toda especial e tentar exprimir o que eu gostaria de dizer. Como uma espécie de consolação, já que Erich [seu irmão] também se tornou um daqueles que ajudaram a construir o futuro de uma grande Alemanha com sangue e força de seu coração. A guerra nos mostrou com toda força que nossa vida tinha um sentido completamente diferente do que o que aconteceu nos caminhos normais de uma vida familiar e burguesa. Ela pertence ao âmbito de um objetivo grandioso e sagrado. Esse objetivo, não conhecemos. Ele foi implantado em nós desde a eternidade e nos conduz para alguma coisa grandiosa e eterna. Pressentimos isso. Neste momento, Deus traça gloriosos caminhos para a história mundial, e nós somos os eleitos, o instrumento eleito. Devemos realmente, verdadeiramente, ficar felizes por isso? À minha volta tudo vicejou e floriu, e os pássaros estão exuberantes de alegria e luz. Como será mais bela e mais grandiosa a primavera pós-guerra”.

Notem bem como esse professor “sente-se obrigado” a escrever uma mensagem “toda especial” como sinal de “consolo” a uma mãe que, pelo que tudo indica, perdeu o outro filho na guerra. Aquele filho também ajudou “a construir o futuro de uma grande Alemanha” — gosto dessa parte — “com sangue e força de seu coração”. Destaco aqui que a “guerra” para ele não significa “horror”, “destruição” ou “inferno”; pelo contrário, guerra é a força fascinante que revela o “sentido completamente diferente” do velho sentido de sua “vida familiar e burguesa”.

No lugar do tédio de uma vida medíocre, ele descobre a promessa. Lutar essa guerra é metamorfosear o próprio caráter, forjar o espírito para uma nova existência. Crer em um objetivo “grandioso e sagrado”. Ser batizado na guerra e sepultar no sangue aquele antigo modo de vida vulgar e insignificante. Portanto, o senso de missão faz com que ele “sinta” o mundo do ponto de vista da eternidade. O peso dos pesos. Beleza, poder e redenção formam uma substância explosiva e liberadora. Nada como viver “uma história mundial”, falar em nome de Deus e anunciar a primavera do porvir.

A partir disso, é só um passo necessário ter de aniquilar qualquer um que contamine a realização desse novo mundo, perseguir e “destruir a mácula que a todos contamina”, como dirá René Girard para explicar a violência universal fruto do mecanismo do bode expiatório: “destruindo a vítima expiatória, os homens acreditarão estar se livrando de seu mal e efetivamente vão se livrar dele”. Como é alto o custo da civilização.

Em tempos de imaginário milenarista e mítica soberba, vale a expressão do velho Nietzsche: “não há fatos, só interpretações”. Não que eu concorde com isso, minha concepção de verdade é bem mais tradicional em termos de “verdade como correspondência” — portanto, bem mais modesta. Porém, diante dos antagonismos políticos, das rivalidades que vão se desenhando e corroendo o tecido social e a consciência pessoal, não adianta evocar o horizonte dos “fatos” e a presença da “realidade”, pois essa é a disputa e o sonho pela “civilização”, onde ninguém mais se constrange em declarar — como demonstrou George Orwell — que “Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força”.

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