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Demorei para publicar meu texto desta semana devido a algumas ansiedades. Primeiramente, pela formatura da minha filha; em seguida, fui convidado para ser paraninfo das minhas turmas do ensino médio do Colégio Presbiteriano Mackenzie em São Paulo. Que honra! Isso sem mencionar a decisão do Campeonato Brasileiro.
Quando precisarmos de um exemplo perfeito do significado de humilhação, lembraremos das derrotas do Botafogo, que foram vexatórias. O que John Textor fez após a derrota foi humilhar, ou seja, causar a degradação completa do que restava da dignidade do clube. E o Santos? Nem para honrar a memória do Rei Pelé foi capaz. Que fiasco. Melhor esquecer. O que realmente importa é que o Palmeiras, meu time do coração, sagrou-se mais uma vez campeão.
Estava ensaiando escrever sobre dois temas; esbocei um artigo sobre o filme Monstros S.A. e outro sobre os justiceiros de Copacabana. Confesso que não consegui terminar nenhum dos dois. Então, veio o resultado do Pisa e, para a surpresa de ninguém, o Brasil ainda está entre as piores médias do mundo. Há tantos problemas na educação brasileira! O que, a meu ver, falta é um projeto que defina o propósito da educação no país. Não existe tal projeto. A educação brasileira carece de propósito. Como professor, sinto-me corresponsável pela situação que vivemos. Que tragédia!
Falta um projeto que defina o propósito da educação no país. Não existe tal projeto. A educação brasileira carece de propósito
Mesmo assim, eu gostaria de compartilhar com vocês meu discurso de paraninfo. Eu esboço aqui o que acredito ser a essência da educação. Se resolverá os problemas sociais mais básicos eu não sei, mas são diretrizes que me dão propósito profissional.
Educar é servir!
Escolhi ser professor... sim, eu sei que isso parece loucura. E, para o desgosto da minha mãe, optei por ser professor de Filosofia. Não sei se vocês se lembram do Jogo da Vida, da Estrela. O ganhador virava magnata; o perdedor, filósofo. De qualquer forma, ao contrário do que sugere o destino dos filósofos no jogo da vida, hoje, aqui com vocês, eu jamais poderia dizer que sou um derrotado.
Escolhi ser professor movido por um impulso simples e persistente: a essência do ensino é a liberdade. Como bem observou o filósofo Rémi Brague: ensinar filosofia é sustentar a liberdade em sua forma mais plena.
E por que me tornei professor? Eu ansiava por vivenciar a sala de aula como espaço sagrado da liberdade. Um ambiente onde as virtudes florescem e suplantam os vícios, as autênticas ervas daninhas que infestam o coração.
Permitam-me começar com uma fascinante curiosidade etimológica: a palavra “escola” deriva do grego scholē, que originalmente significava “tempo livre”. Isso mesmo, ócio, não fazer nada.
Intrigante. Pois ócio, naquela época, não era tédio, preguiça ou desculpas para se perder nos infinitos reels no Instagram. Ao contrário, tratava-se da preciosa disposição para o diálogo, a disposição para vivenciar o entusiasmo da descoberta.
Sócrates exortava seus discípulos ao filosofar indagando se eles estavam em estado de scholē, ou seja, dispostos à aventura do conhecimento.
Para mim, a escola é o verdadeiro templo da liberdade – o altar onde a vocação do diálogo, a energia do pensamento, o calor do afeto e o amparo da amizade se manifestam e nos ajudam a realizar a nossa vocação humana.
Minha escolha pela docência não foi motivada pelo desejo de revolucionar o mundo. Ao contrário, foi o anseio de pensar o mundo livremente que me fez professor. Nunca sozinho, odeio a solidão, mas sempre em viva comunhão com pessoas reais.
Pergunto-me: não seria esse o verdadeiro sentido de felicidade? Pensar livremente o mundo, explorá-lo, desvendá-lo e compartilhar as alegrias dessas descobertas... Sim, é isso, esse é o sentido da belíssima e tão cheia de significado palavra eudamonia: realizar a nossa vocação para a verdade.
Aristóteles nos ensinava que a verdadeira felicidade só é possível quando compartilhamos. Cada um de vocês, ao meu lado, integrou minha jornada para a felicidade – pois me ajudou a ter uma vida completa.
Na figura de Jesus Cristo, a educação assume uma dimensão salvífica, e se volta para o cultivo dessa vida interior, que, por sua vez, irradia para a vida social e aponta para o Reino de Deus
Sempre me inspirei em dois grandes educadores – Sócrates e Cristo. São meus modelos de vida pedagógica. Então, compartilho as razões dessa inspiração como minha última lição.
Ambos, Sócrates e Cristo, simbolizam as raízes de duas tradições espirituais às quais me filio. Meu coração habita duas cidades emblemáticas: Atenas e Jerusalém. Na cidade dos homens, nosso dever é harmonizar Justiça e Razão; na outra, a mais importante e mais bela de todas as cidades, a cidade de Deus, nosso alimento consiste em Caridade e Fé.
E, como qualquer ser humano, padeço das tentações dos vícios e das trevas do pecado. Nunca podemos esquecer dessa preciosa lição cristã: até as pessoas boas estão aptas a praticar o mal.
Em Sócrates, encontro a liberdade como um ato moral humano supremo, que é vivenciado no coração da polis através do diálogo. A filosofia socrática, mais do que teórica, é um convite constante à reflexão compartilhada.
A virtude nasce do diálogo em sociedade, mas se inicia, primeiramente, com uma introspecção à nossa cidade interior. Aqui, a tentação perigosa é o poder – sim, o poder corrompe. Por isso, sempre devemos evocar a oração que o Senhor nos ensinou: “não nos deixei cair em tentação”.
Na figura de Jesus Cristo, a educação assume uma dimensão salvífica, e se volta para o cultivo dessa vida interior, que, por sua vez, irradia para a vida social e aponta para o Reino de Deus. O cerne aqui é a liberdade da vontade. A tentação, neste caso, é o desejo desmedido – filho do pecado – cujo perigo é a soberba, que envenena a alma.
Com Cristo e Sócrates, aprendemos a lidar com a ilusão da verdade, seja ela mascarada pela razão ou desvirtuada pelo desejo. Com eles, aprendemos a discernir o que é essencial.
E o que é essencial? O que torna a vida digna de ser vivida?
Ouso responder: A liberdade.
Precisamos nos libertar dessas tentações, das falsas promessas das ideologias e da deformação dos desejos. Educar é, em essência, se libertar.
Na sala de aula, essas duas dimensões da liberdade humana se entrelaçam. Ser livre no poder é diferente de ser livre na vontade. A servidão voluntária e o abismo da angústia são fantasmas que rondam o coração humano. E na companhia de vocês, aprendi também a me proteger desse mal.
Com vocês, me alimentei de humildade. É nesse sentido que faço das minhas aulas o altar do diálogo afetuoso, um pacto de amizade e, portanto, um templo de liberdade.
Ser livre no poder é diferente de ser livre na vontade. A servidão voluntária e o abismo da angústia são fantasmas que rondam o coração humano
O espaço pedagógico das nossas aulas, que é o espaço da reflexão e afeto, foi constituído pela fala e pela escuta. Só depois veio a leitura e a escrita. Contudo, jamais haveria texto para ler sem o tempo do falar e do ouvir. Falamos e ouvimos juntos.
Quem assiste às minhas aulas sabe que a experiência primordial é ter de falar e ouvir comigo. Nunca falo sozinho. Nunca estou sozinho. Nunca falo do alto da minha sabedoria. Eu odeio a solidão. Com meus alunos, aprendi que ensinar é servir. Descobri a fórmula da liberdade: Ensinar é servir!
Meu maior medo não é a morte, mas o vazio da solidão, principalmente a solidão mortal da arrogância e da soberba. Não me sinto à vontade com a noção pedagógica de que o professor deva ser o mediador do conhecimento. Isso é o mal que corrói a educação em sua raiz. Professor não é detentor, facilitador ou mediador.
Meu ideal de educador, o que busquei viver com vocês nesses últimos anos, é ser parceiro e inspirador. É servir. As virtudes exigidas aqui são as da caridade e da humildade. Educar é servir!
Mas também justiça, coragem, prudência e amizade. Uma luta constante contra a doença da indiferença, a cegueira da vaidade e o abismo do orgulho.
Ensinar é compartilhar o sentido daquilo que os gregos chamavam de thaumazein, o espantoso maravilhar-se. Perca o maravilhamento e um pouco de nós, professores e alunos, morrerá por dia. A mais brutal doença do espírito é a clausura do egoísmo. Causa nefasta de toda apatia. Libertem-se!
É na coragem do maravilhar-se que brotam as perguntas fundamentais sobre a vida, a existência e o conhecimento. Elas renascem na maravilhosa inspiração do espanto. Maravilhem-se! Quando estiverem maravilhados, compartilhem, pois é na relação com o outro que está contida a genuína alegria da descoberta.
Sejam sempre generosos. Educar é servir!
Eu sei o quanto é difícil concorrer com as dancinhas do TikTok, as tretas do Twitter e as competições de Brawl Star. São ruídos. É muito difícil competir com o tédio e o sonolento, mas não maldoso, no máximo deselegante, cansaço da adolescência. Então, juntos, sejamos livres.
Se ensinar é ato de liberdade, se libertem do desejo desenfreado, ele desvirtua o nosso caminho da afeição... Cultivem o respeito, a pureza e a caridade.
Se ensinar é ato de liberdade, se libertem dos excessos, pois os excessos obscurecem a moderação... Valorizem a simplicidade!
Meu maior medo não é a morte, mas o vazio da solidão, principalmente a solidão mortal da arrogância e da soberba
Se ensinar é ato de liberdade, libertem-se da cobiça! Não tenham medo. Pratiquem sempre a benevolência!
Se ensinar é ato de liberdade, se libertem da apatia, a preguiça sufoca o brilho das nossas conquistas... Tenham zelo por tudo, sejam perseverantes!
Se ensinar é ato de liberdade, se libertem da ira, pois a ira corrompe a justiça... Cultivem a paciência!
Se ensinar é ato de liberdade, não sejam invejosos, a inveja é uma das mais sombrias doenças do espírito. Cultivem, sempre, a amizade!
Se ensinar é ato de liberdade, não sejam soberbos e orgulhosos, a soberba e orgulho nos isolam em uma torre de autoengano. Pratiquem a humildade. Sejam gratos e generosos!
Na companhia de vocês, aprendi a me libertar de muitos medos e vícios.
Com vocês, posso dizer que vivenciei a lapidar mensagem de Aristóteles: a felicidade é a atividade da alma numa vida completa segundo a virtude perfeita.
Vocês enriqueceram meu espírito com generosidade e esperança. Agradeço por compartilharem essa nobreza de espírito.
É na coragem do maravilhar-se que brotam as perguntas fundamentais sobre a vida, a existência e o conhecimento. Elas renascem na maravilhosa inspiração do espanto
A presença de vocês me ensinou a essência da humildade, mostrando-me que cada voz e olhar tem seu valor inestimável.
A conduta de vocês me guiou a compreender a virtude da justiça, equilibrando a balança do meu julgamento com compaixão e reverência. Não esquecerei disso!
A alegria de vocês me inspirou a prudência, ensinando-me a arte de ponderar e agir com alegria e cautela.
O entusiasmo da descoberta de vocês reforçou em mim o amor pelo que é belo e verdadeiro na arte de ensinar.
A fé de vocês contribuiu com a minha própria compreensão do que é ter fé: um farol guiando-me através da tempestuosa aflição da dúvida e do medo do fracasso.
Espero não ter fracassado com vocês.
Posso dizer com tranquilidade e orgulho: hoje, eu percebi que ganhei no Jogo da Vida.
Aproveitem a vida. E, como diz Agostinho, “amem e façam o que quiserem”.
Sejam livres!
Obrigado.