Na lapidar frase de abertura de seu livro, Sobre a tirania ― Vinte lições tiradas do século XX, o historiador americano Timothy Snyder escreve: “a história não se repete, mas ensina”, pois a história — essa é a sua tese mais cara — tem pelo menos duas funções básicas: nos familiariza e nos adverte com relação ao fato de que política também deve ser lida como história da usurpação do poder. Não seria este o registro mais adequado da definição de tirania: “a violação da lei pelos governantes em benefício próprio”?
No contexto dos usurpadores da democracia, o alerta de Snyder deve ser conjugado com o do teórico político Bernard Crick, em seu excelente Em Defesa da Política: “Democracia é, talvez, a palavra mais promíscua no mundo dos assuntos públicos”. É, pois, preciso ficar atento com quem excessivamente fala em nome do poder soberano do povo como se fosse o genuíno defensor da democracia. A história está aí para nos advertir.
O passado oferece muitos exemplos de pessoas que, com as melhores das intenções, praticaram o mal, em nome do bem e da justiça
Autor de dois livros importantes sobre os horrores comunistas e nazista: Terras de sangue: A Europa entre Hitler e Stalin: A Europa entre Hitler e Stalin e Terra negra: O Holocausto Como História E Advertência, ambos publicados no Brasil pela editora Record — Snyder convida o leitor a “recorrer à história quando a nossa [atual] ordem política está em perigo”. Afinal o passado oferece muitos exemplos de pessoas que com as melhores das intenções praticaram, em nome do bem e da justiça, o mal.
Sendo assim, não podemos cair na ingenuidade de pensar que nossa atual ordem democrática nos “protege automaticamente dessas ameaças”. Aqueles que olham do futuro tem a vantagem com relação aos homens do passado: “podemos aprender com a experiência deles”. O importante, portanto, consiste em saber adaptar aquelas experiências às nossas atuais circunstâncias — e essa é exatamente a proposta das vinte lições do século XX para o presente.
No livro, Snyder elenca suas lições não como mero exercício de historiador inventariando o passado, como se passasse por um museu a fim de esquecer os problemas do presente, mais do que isso, ele busca atualizar essas breves lições para o aqui e agora. E é exatamente nesse sentido que o livro deve ser lido: uma ponte entre as nossas ameaças presentes e as experiências do passado. Ou seja: como advertência. Despertar a memória para não nos esquecermos dos perigos que nos ameaçam.
Algumas dessas lições são: Não obedeça de antemão; Defenda as instituições; Cuidado com o Estado de partido único; Assuma sua responsabilidade; Lembre-se da ética profissional; Cuidado com grupos paramilitares; Trate bem a língua; Acredite na verdade; Investigue.
Nada mais antirrepublicano do que se submeter livremente à autoridade de alguém
Dessas, gostaria de destacar apenas três. Na lição 1, Snyder nos alerta o seguinte: Não obedeça de antemão, já que a maior parte do autoritarismo é concedido voluntariamente. A obediência, ou servidão voluntária, é a base dessa lição. Nada mais antirrepublicano do que se submeter livremente à autoridade de alguém. Pergunta Snyder: só os alemães [nazista] procederam dessa maneira? Para responder a essa provocação, o autor recorre ao experimento de Stanley Milgram e mostra como o mecanismo de submissão e obediência é bem mais complicado do que acreditar na tranquilizadora ideia de que “eu jamais faria isso”.
Na lição 3, adverte: Cuidado com o Estado de partido único. Os partidos que suprimiram os rivais não foram onipresentes desde o começo. Por isso, fuja das promessas unipartidárias e prefira sistemas multipartidários. Ninguém fala em nome de todos. O conceito de “povo” implícito no termo democracia não significa “uma unidade orgânica”, como propagandeia o populista e seus devotos.
O nacionalismo político não pode ser confundido com democracia e a ideia de se achar o “representar o povo” pode se tornar uma expressão tão vazia de significado que até monarquias de direito divino, democracias socialistas (ditadura do proletariado exercida pelo partido único) e ditaduras nacionalistas (com a messiânica busca de autodeterminação do Volkgeist) podem se passar por genuínas representantes o povo.
Nenhuma escalada de violência política, nenhuma epidemia de rivalidades, nasce como discurso de ódio antes de ser a conclusão lógica da crença de que “a vontade do povo”, conduzida por um pequeno grupo disposto a fazer o que for necessário para se manter no poder, por si, é vontade infalível. “Povo” aqui não se trata de uma unidade transcendental. Vale destacar que a legitimidade democrática só faz sentido quando o sistema político preserva o pluralismo de ideias, garante o contraditório e oferece segurança às pessoas que discordam do governo.
A lição 10 do livro de Snyder pode ser lida como uma verdadeira tese “platônica”: Abandonar os fatos é abandonar a liberdade. Se nada for verdadeiro, ninguém poderá criticar o poder, porque não haverá base para fazê-lo.
Nesta importante lição, Snyder recorre a Victor Kemplerer, autor A linguagem do Terceiro Reich. Kemplerer demonstrou como a verdade morre de quatro modos: hostilidade à realidade, que seria apresentar mentiras como se fossem fatos; encantamento xamanista, que se refere a tratar o ficcional plausível e a conduta criminosa em coisas desejáveis; pensamento mágico, isto é, a adoção aberta à contradição a ponto de aceitarmos mentiras como se fossem a mais pura expressão da verdade; e, por fim, exploração indevida da fé, ou seja, transformar a expectativa política um sinal de esperança a ponto de substituir a religião.
Sintetiza Snyder o peso histórico de toda essa lição: “quando o sentimento fé se desloca do céu à terra […]. Compreender é inútil, é preciso ter fé. Eu acredito no Führer” — ele sempre tem razão.
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