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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Em defesa da tranquilidade e da filosofia

(Foto: Reprodução)

Em geral, as pessoas têm uma vaga impressão de que filosofia é importante, mas não sabem o porquê. Imaginam que é muito difícil estudar filosofia, mas não querem saber quais são essas dificuldades. Sabem que filosofia faz a gente “pensar melhor”, mas não sabem o “que” e “como” se desenvolve esse tal de “pensamento filosófico”. Com certo entusiasmo, defendem que filosofia refina o senso crítico, mas confundem senso crítico com ter opinião formada a respeito de tudo. Por fim, otimistas esperam que filosofia possa ajudar o país a formar bons cidadãos; pessimistas acham que filosofia não serve para nada, e para se construir uma grande nação não precisamos de filósofos, mas de engenheiros e vontade política.

Contrariando um pouquinho o veredito popular, filosofia é a mais concreta, exata e objetiva de todas as disciplinas, pois estabelece a racionalidade como seu critério fundamental. Além disso, exige tranquilidade e liberdade interior. Não falo isso por trabalhar com filosofia. Não tenho interesses corporativistas. Graças a Deus não há sindicato de filósofos. Na verdade, meu interesse pela filosofia nasceu quando descobri essas exigências ligadas à atividade filosófica. Eu mesmo nutria um preconceito enorme quando moleque. Na época do colégio meu primeiro contato com filosofia foi terrível. Transmitiram para mim aquela visão pavorosa de que filosofia era coisa de gente desmiolada e desocupada. Por força da minha própria curiosidade, fui ler os grandes filósofos. Gostei tanto que estou nessa até hoje.

Entre nós aqui, acho que a vagueza e o empobrecimento da linguagem filosófica está mais em quem ensina filosofia do que em quem expressa alguma impressão popular a respeito do assunto. Professores de filosofia têm de assumir o compromisso profissional e demonstrar as exigências racionais e morais da atividade filosófica. O compromisso básico exigido por essa disciplina, mais do que por qualquer outra área do conhecimento humano, é o de ser rigorosamente preciso, coerente, objetivo e responsável. Não ser um “malucão” querendo fazer a cabeça da molecada, ou um pedante que se coloca num pedestal acima do bem e do mal. Já vi vários colegas indo por esses caminhos.

Era Sócrates quem pautava os cidadãos; ele não era pautado pela opinião pública da época. Não à toa foi condenado à morte

A exigência de rigor, clareza, objetividade e tranquilidade não significa ter de perder a paixão e o entusiasmo pedagógico. O problema de alguns professores é confundir a paixão e o entusiasmo pedagógico com retórica vazia e entusiasmo ligado ao que se passa nas redes sociais. É uma tragédia para o ensino de filosofia ver professores pautarem suas aulas pela hashtag do dia. O pior é tentarem justificar isso apelando para o que fazia Sócrates no contexto da cidade democrática de Atenas, na Grécia Antiga.

Sócrates ficou conhecido por fazer da filosofia uma atividade dialógica, de confronto de ideias numa comunidade viva de conversa, onde formulava perguntas para cidadãos a fim de investigar os fundamentos de suas crenças, que davam, acima de tudo, suporte para a vida moral. Sócrates descobriu que os cidadãos atenienses supunham saber um conhecimento quando, na verdade, nada sabiam do assunto. Por causa disso, a tomada de consciência de ignorância marcou uma diferença crucial entre filosofia e a arte retórica, ensinada por sofistas. Porém, vale destacar que Sócrates era quem pautava os cidadãos e não era pautado pela opinião pública da época. Não à toa foi condenado à morte.

A filosofia não cria problemas por capricho de gente desocupada. Certamente, em algum momento da vida, todo mundo já formulou algum problema filosófico

No ensino de filosofia, paixão e entusiasmo pedagógico devem coincidir com rigor lógico e precisão semântica. Demandam tempo e paciência. Se um professor é vago e dispara discursos confusos e imprecisos, deveria procurar outra profissão. Uma parte importante do entendimento de problemas filosóficos depende muito da exposição didática desses problemas. Não há nada de obscuro em um problema de filosofia. Certamente, em algum momento da vida, todo mundo já formulou algum problema filosófico, mas por qualquer motivo pessoal interrompeu o ciclo de questionamento. Problemas filosóficos são problemas humanos sem mistérios ou exigência de capacidades extraordinárias.

A filosofia não cria problemas por capricho de gente desocupada. Todos os problemas são formulados a partir de experiências humanas muito concretas e vivas. No entanto, o pensamento filosófico exige a experiência de um tempo diferente do tempo cotidiano. A filosofia exige tranquilidade, coragem e humildade. Exige diálogo interior, liberdade e profundo senso de responsabilidade. E se hoje o tempo cotidiano é pautado pelo que se passa nas redes, que não oferece tempo para nada, então não sobra tempo para aprofundar filosoficamente certos problemas. Estamos cada vez mais nos tornando uma sociedade de pessoas intranquilas. A problematização lançada de manhã já não faz mais sentido à tarde. Nada é mais difícil que vencer os encantos da discussão pública permanente e se manter amarrado no mesmo lugar.

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