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O levantamento mais recente, de agosto de 2022, indica que existem atualmente 175 clínicas no país, sendo 33 em São Paulo, 12 no Rio de Janeiro, 11 em Belo Horizonte, 10 em Porto Alegre e oito e Curitiba. Em 2022, havia ao todo 284.232 embriões congelados no país, 67,2% deles na Região Sudeste.
Bióloga chama concepção de “momento mágico” em tentativa de desqualificar convicções científicas e filosóficas sobre início da vida.| Foto: Freepik

A recente decisão do Tribunal Superior do Alabama, que classificou embriões congelados como “crianças” (as aspas estão no documento original), permitiu ações indenizatórias contra clínicas de fertilização in vitro. Obviamente, isso gerou ampla controvérsia nos Estados Unidos e na imprensa progressista brasileira – para não falar da França, que colocou o direito ao aborto como garantia constitucional. Todos ficaram eufóricos e não esconderam a alegria. Agora vai, a civilização chegou ao ápice.

Na verdade, a polêmica do Alabama (outro dia falamos dos franceses) girou em torno não exatamente do conteúdo da decisão em si, que foi apoiada por uma maioria de 8 a 1, mas pela forma como o presidente da corte, Tom Parker, formulou seu voto. Para o desespero dos progressistas, Parker teria argumentado que a vida humana, desde a concepção, é sagrada e reflete a imagem de Deus, uma visão que, segundo os críticos, ele sustentou com referências a textos religiosos e teológicos.

O que não vi ninguém dizendo foi um dado simples na abertura do voto de Parker. Assim ele inicia seu voto:

“Um bom juiz segue a Constituição em vez da política, exceto quando a própria Constituição ordena que o juiz siga determinada política. Nesses casos, isso significa defender a santidade da vida não nascida, incluindo vida não nascida que existe fora do útero. Nossa Constituição estadual contém a seguinte declaração de política pública: ‘Este estado reconhece, declara e afirma que é política pública deste estado reconhecer e apoiar a santidade da vida do nascituro e os direitos dos nascituros, incluindo o direito à vida’. Isso está na própria Constituição do Estado do Alabama, no Artigo 1, Sec. 36.06.”

A defesa da santidade da vida passa, necessariamente, por uma compreensão abrangente daquilo que o povo, consciente de sua declaração, defende: a vida do nascituro é santificada não pelo povo, mas por Deus

Portanto, quem definiu e defende a santidade da vida não foi o juiz, mas os constituintes do estado do Alabama. O voto do juiz, na verdade, explica e justifica o que a Constituição defende quando defende a “santidade da vida” do nascituro. Não se trata de uma metáfora; a defesa da santidade da vida passa, necessariamente, por uma compreensão abrangente daquilo que o povo, consciente de sua declaração, defende: a vida do nascituro é santificada não pelo povo, mas por Deus. Infelizmente, o povo brasileiro não está lá muito acostumado com juízes e legisladores que cumpram o dever de proteger a Constituição.

Mas vamos dar uma olhada no que nossos especialistas disseram sobre o caso. Eu pincelei o texto de Natalia Pasternak, uma famosa bióloga e divulgadora científica brasileira. Vou analisar por partes. Ela começa assim:

“‘Vida’ humana e ‘pessoa’ humana são conceitos diferentes. A rigor, mesmo antes de se encontrarem, óvulo e espermatozoide estão ‘vivos’. E a despeito do que se diz por aí, não há um momento mágico da concepção: após o encontro dos gametas, desenrola-se um processo de semanas que inclui a formação do zigoto, o início da divisão celular, a migração da trompa para o útero, a implantação, e uma série de outras etapas, todas incrementais e nenhuma que possa ser cravada, por critérios estritamente científicos, como definitiva.”

De fato, hoje, “vida” e “pessoa” são conceitos distintos. Ela está certa; até um fio de cabelo ou uma célula cancerígena podem ser considerados “vivos”. Natalia olha para o mundo segundo os critérios de um biólogo, vê processos biológicos, nada além disso. Portanto, para ela, a formação do zigoto, o início da divisão celular etc. são apenas fatos biológicos. A biologia nunca permitirá a um biólogo, no exercício de sua condição de biólogo, ver outra coisa, assim como para um químico todos os fatos naturais são fatos químicos. Aqui cabe bem o velho ditado: “na noite, todos os gatos são pardos” – inclusive usado por maestria por Hegel para criticar quem não vê distinções.

O que mais me chama a atenção neste parágrafo é um detalhe aparentemente insignificante, que poderíamos deixar passar despercebido sem grandes problemas: “a despeito do que se diz por aí, não há um momento mágico da concepção”. Os destaques são meus. A expressão “a despeito do que se diz por aí” não passa de um momento arrogante, embora sutil, da especialista em processos biológicos, que é míope para outras realidades, inclusive a construção de argumentos falaciosos.

Na lógica informal, a expressão “a despeito do que se diz por aí” pode ser usada para introduzir uma contraposição ou objeção a uma opinião comum, amplamente aceita ou divulgada entre o público geral. Mas como Natália chegou à conclusão de que um público geral, aparentemente despreparado, pensa isso da concepção? Trata-se de uma evidência anedótica. Essa é uma falácia que reside na suposição de que, se algo é verdadeiro para um caso particular ou para algumas experiências individuais, então deve ser verdadeiro de forma mais geral ou universal.

Em resumo, a divulgadora científica não foi nada científica na checagem de suas evidências. Essa informação sobre “o que se diz por aí” não é baseada em estudo cuidadoso. Pasternak nunca deve ter se dado ao árduo trabalho de ler o que “dizem por aí” a respeito da concepção como um ponto rigoroso para a origem de uma pessoa. Chamar de “momento mágico” é só o apelo retórico que ela encontrou para menosprezar os adversários imaginários dela.

Vamos continuar, caro leitor. Quero destacar outra passagem:

“Decidir em que ponto de seu desenvolvimento e organização um aglomerado de células humanas passa a merecer o status de pessoa é uma questão filosófica cuja resposta deve ser informada pela cultura e pela ciência, e a decisão do Alabama viola ambas, a ponto de os legisladores do estado terem sido constrangidos a aprovar leis emergenciais para garantir a reabertura das clínicas.”

Pasternak nunca deve ter se dado ao árduo trabalho de ler o que “dizem por aí” a respeito da concepção como um ponto rigoroso para a origem de uma pessoa

Há tantos problemas nesse parágrafo que não ousaria aborrecer os leitores com os detalhes. Destacarei apenas dois. Primeiro, a afirmação de que “o status de pessoa é uma questão filosófica cuja resposta deve ser informada pela cultura e pela ciência”. Isso é para quem não conhece filosofia e os limites da própria ciência. De fato, ela está certa ao dizer que o status de pessoa é uma “questão filosófica”. Porém, ela está completamente equivocada em dizer que a “resposta deve ser informada pela cultura e pela ciência”. Questões filosóficas são orientadas pelo exercício da razão, pelo critério e vocação de verdades universais, independentemente da cultura. Além disso, a filosofia não se fundamenta na ciência, mas o contrário: os pressupostos da ciência é que são filosóficos.

Há ainda mais um detalhe: a ciência – pelo menos a ciência da natureza, especialidade da Pasternak – não “vê” pessoas, só fatos científicos. “Pessoa” não é uma categoria aberta para o método científico.

O mais constrangedor é um detalhe que a própria Pasternak não conseguiu perceber, talvez pelo excesso de luz advinda da ciência: “a decisão do Alabama viola ambas, a ponto de os legisladores do estado terem sido constrangidos a aprovar leis emergenciais para garantir a reabertura das clínicas”. A decisão do Alabama não violou nada, mas garantiu aquilo que fora informado pela cultura cristã do povo do Alabama. A própria Pasternak reconhece que “é uma questão filosófica cuja resposta deve ser informada pela cultura”. Desde que não seja a cultura cristã, pelo visto.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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