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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Ensaio sobre a minha mediocridade

(Foto: Gerd Altmann/Pixabay)

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Durante todo o meu ensino médio, fui um aluno medíocre. Digo isso sem autopiedade. O fato é que naquela época eu não fazia nada além das minhas obrigações para passar de ano. Verdade seja dita: eu não podia perder minha bolsa de estudos e, pior ainda, não podia decepcionar minha mãe. Mamãe sempre foi minha âncora moral – e consiste numa grande exclusividade. No entanto, registro: minha anarquia juvenil tinha limites bem definidos.

Bom, como todo aluno medíocre, não fazia nada mais e nada menos daquilo que deveria ser feito. Às vezes precisava arriscar uma cola. E quem nunca colou que atire a primeira pedra. Confessarei outro pecado: odiava ir para a escola. O estudo escolar era algo insuportavelmente maçante, sistematicamente tedioso. Pedagogicamente falando, na maior parte do meu ensino médio, eu não gostava de assistir a aulas. Se fazia, era por obrigação: não perder a bolsa, não decepcionar minha mãe...

Por outro lado, meu sonho era ser poeta e as obrigações escolares eram o contrário da experiência poética. Gostava de ler os clássicos. Na minha cabeça de gente medíocre, havia uma distinção incontornável entre devorar os clássicos e assistir à aula. Realidades incompatíveis: ler os clássicos é símbolo da liberdade interior; assistir à aula na instituição de ensino técnico, símbolo da dominação burocrática.

Odiava ir para a escola. O estudo escolar era algo insuportavelmente maçante, sistematicamente tedioso. Pedagogicamente falando, na maior parte do meu ensino médio, eu não gostava de assistir a aulas

E eu sentia que a rotina da escola amputava qualquer resquício da minha genialidade estética – sim, eu acreditava no potencial dos meus versos, sentia-me um herdeiro de Bocage e Álvares de Azevedo. Inventei uma “Marília” e minha “Lira dos 20 anos”. Para quem não lembra, refiro-me ao extremo amor de Bocage, cuja intensidade estes versos sintetizam:

Marília, nos teus olhos buliçosos
Os Amores gentis seu facho acendem;
A teus lábios voando os ares fendem
Terníssimos desejos sequiosos:

Teus cabelos subtis e luminosos
Mil vistas cegam, mil vontades prendem:
E em arte de Minerva se não rendem
Teus alvos curtos dedos melindrosos:

E ao tédio mortal do poeta Álvares de Azevedo, que só quer descansar à sombra de uma cruz:

Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo.
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!

Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
Foi poeta – sonhou – e amou na vida.

Até cheguei a arriscar uns versos (por favor, não julguem, afinal eu escrevi essas tolices amorosas aos 17 anos):

O vestígio líquido e acre dos vazios nebulosos
A espessura corrompida da vida sem espessura
Profundidade nula, aborto de toda profundidade.
A paixão se escraviza no martírio de toda memória,
As saudades submersas nas promessas do vinho,
E lembranças do excesso do não-morrer de te amar.

Era para eu me formar um técnico, depois trabalhar numa indústria. Contudo, as inspiradoras aulas de dois professores de História e Literatura me despertaram para o enigma de ensinar

Deixe-me explicar melhor. Para começar, fiz técnico em Química no Senai. Tive excelentes professores e fui treinado a pensar em certos problemas à luz da racionalidade industrial. Fiz o que pude. Mamãe acreditava no meu potencial: trabalhar, ter um bom cargo em uma empresa, ter um bom salário, uma mesa para chamar de minha, colegas de trabalho para chamar de colaboradores – embora não suportando a companhia de nenhum deles –, um chefe para puxar o saco...

Radicalmente, tudo isso mudou quando conheci, em meados de 1993, dois professores. História e Literatura. Hoje são entidades platônicas na minha memória. Era para eu me formar um técnico, depois trabalhar numa indústria. Contudo, as inspiradoras aulas desses caras me despertaram para o enigma de ensinar. Eles não sabem disso: acordaram-me de um pesadelo dogmático. Sou professor há 20 anos por causa desses meus professores.

Havia ali algo de inaudito. De certa forma, esses professores sabotaram o propósito da instituição, daquele sanatório com objetivo de adestrar minha alma, controlar meu corpo e inibir meus interesses. Lá era para eu ser um técnico, nada além disso. Porém, foi a partir desses professores que eu descobri que poderia ser professor. Ora, não comemoramos o dia da Escola, do Ensino, da Educação. Comemora-se o Dia dos Professores por uma razão simples: “inspirar é preciso, viver não é preciso”.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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