Sou professor de Filosofia e considero a sala de aula um espaço privilegiado, quase sagrado, para ser sincero, de liberdade. Assim como considero a vida interior outra cidadezinha que precisa constantemente de atenção. São dois compromissos, portanto. Esses dois compromissos podem muito bem ser pensados na difícil relação entre bem comum e privacidade. Logo, penso na filosofia como uma ponte entre esses dois mundos, já que a filosofia nos dá o poder de pensar livremente, e poder pensar livremente acerca de tudo. Mas não dá para fazer isso na solidão. Escolhi filosofia em virtude da liberdade de reflexão e do bom diálogo. As conversas filosóficas sempre me ensinaram muito.
Por isso, hoje trago mais uma entrevista sobre filosofia. Dessa vez, converso com meu amigo professor Gabriel Ferreira. Gabriel tem graduação em Filosofia pela Faculdade de São Bento/SP (2007), mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2009) e doutorado em Filosofia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos, 2015). Realizou estágio pós-doutoral na Universidade de Pittsburgh (EUA), com supervisão do filósofo e professor Robert Brandom, com bolsa da Fulbright Comission (2021-2022). É membro do Grupo de Estudos sobre a Obra de Kierkegaard e do Grupo de Estudos das Origens da Filosofia Contemporânea, ambos na CNPq. É presidente da Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard e editor da Geltung – Journal of Studies on the Origins of Contemporary Philosophy. Atualmente, é professor da graduação e do PPG-Filosofia da Unisinos.
Qual a melhor abordagem para a compreensão da filosofia?
A pergunta é muito boa porque é bastante recorrente e porque ela própria já articula algumas coisas interessantes. Questionar sobre a melhor abordagem pressupõe ao menos duas coisas razoavelmente questionáveis: a primeira é que haja várias abordagens possíveis, e a segunda é que algumas sejam melhores do que outras. Se deixarmos de lado variações simplesmente didáticas (mais ou menos uso de exemplos atuais, mais ou menos uso de elementos midiáticos, como filmes, séries, músicas, artes plásticas), creio ser tranquilamente possível dizer que, para efetivamente compreender filosofia enquanto filosofia mesmo, ou seja, não apenas como uma coleção ou emaranhado de dizeres de pessoas muito estranhas, só existe um modo. E é aí que a coisa fica, paradoxalmente, mais complexa.
“Seja lá o que possamos chamar de ‘compreensão de nós mesmos’, isso passa necessariamente pelo enfrentamento de determinadas questões que não são passíveis de serem tratadas simplesmente do ponto de vista específico de algumas das áreas do saber, como as ciências.”
Gabriel Ferreira, doutor em Filosofia e professor da Unisinos.
Filosofia é uma atividade intelectual que, como qualquer outra presente nas diversas áreas do saber humano, é orientada a problemas. Isso significa que compreender filosofia como tal atividade significa compreendê-la na conexão com problemas filosóficos e, portanto, ser capaz de conectar o que os filósofos dizem com o tratamento – que não se reduz apenas à solução – de problemas bem determinados. Sem que se consiga estabelecer tal conexão, voltamos a considerar a filosofia como apenas uma coleção rapsódica de dizeres mais ou menos inspirados, isto é, voltamos a um estado de não compreendê-la. Gosto sempre de dar um exemplo: quase todo mundo tem uma vaga ideia do que seja a alegoria da caverna tal como utilizada pelo filósofo grego Platão – nem que seja com o recurso ao filme Matrix. Pois bem, a alegoria da caverna está no livro VII d’ A República, que, por sua vez, tem como problema fundamental a questão “O que é a justiça?” Isso significa que compreender a alegoria da caverna só é possível quando se é capaz de fazê-la retroceder, por meio da reconstrução lógica argumentativa do livro, ao tratamento daquele problema; caso contrário, você pode saber de cor cada detalhe da narrativa e, ainda assim, não compreendê-la apropriadamente.
Assim, a melhor – porque única – abordagem para compreender filosofia é entendê-la a partir desse quadro orientado a problemas.
Por que estudar Filosofia ainda é relevante para a compreensão de nós mesmos?
Seguindo o que respondi na questão anterior, agora fica um pouco mais fácil de enfrentar essa pergunta. Seja lá o que possamos chamar de “compreensão de nós mesmos”, isso passa necessariamente pelo enfrentamento de determinadas questões que não são passíveis de serem tratadas simplesmente do ponto de vista específico de algumas das áreas do saber, como as ciências, por exemplo. “Compreender a nós mesmos” significa enfrentar problemas tais como “Como nossa finitude altera nossa existência?“, “Como determinamos os princípios morais da nossa vida?”, “Como as sociedades devem ser organizadas?”, “Quais os limites das nossas percepções e ações?”, “Como estabelecer critérios para determinadas decisões políticas, científicas, médicas etc.?”. Como se pode ver, embora essas questões digam respeito à política, à ética, à bioética, à medicina etc., elas não podem ser dirimidas somente com o recurso aos métodos e práticas dessas áreas, mas pedem uma reflexão de tipo filosófico. Quando se fala em compreender a si mesmo, ninguém imagina que isso signifique simplesmente estudar anatomia ou fisiologia humanas, ou mesmo Psicologia ou Antropologia, embora tal reflexão deva estar em diálogo com tais áreas. Assim, a filosofia é, por excelência, o campo que considera todas essas perspectivas em busca de uma visão omniabrangente que possa, aí sim, enfrentar a questão pela compreensão de si mesmo.
Na nova edição do seu curso de extensão, você fala em “reflexões metafilosóficas”. O que vem a ser “metafilosofia”?
Durante anos resisti à ideia de um curso de introdução à filosofia por ao menos duas razões: há muitos deles por aí, ao atacado, e também, como sou um professor universitário idealista, sempre achei que o melhor ambiente e modo de estudar alguma coisa é na universidade. Não porque você não possa estudar nada por sua conta, de maneira autodidata, mas simplesmente porque a universidade é a única instituição que seres humanos criaram há 800 anos, integralmente voltada ao crescimento do conhecimento de maneira superior. Assim, quando optei por finalmente montar o curso, quis fazê-lo como um curso de extensão universitária e com uma perspectiva distinta. Por isso o curso é uma introdução a partir de reflexões metafilosóficas, o que quer dizer que ele não parte de um panorama geral sobre a história da filosofia, nem se move por meio de temas filosóficos específicos, mas está estruturado por problemas que dizem respeito à natureza da atividade filosófica, suas relações para com outras áreas do saber humano e as relações para com sua própria história. O termo “metafilosofia” foi cunhado por um filósofo, Lazerowitz, na década de 1940, para justamente se referir a esse tipo de questões. Desde então o conceito ganhou amplitude e hoje descreve todo um universo de problemas relacionados aos que eu mencionei. E isso é, precisamente, o diferencial deste curso.
O senso comum, em geral, considera filosofia “muito difícil” e “distante” dos problemas cotidianos. O que há de verdade e o que há de equívoco nesse tipo de percepção?
Não se pode negar que os problemas filosóficos podem ser vistos como difíceis ou como distantes, mas até para que eles sejam encarados como tais penso que é preciso lidar antes com um outro aspecto da coisa. Quem melhor descreveu esse aspecto foi o filósofo alemão do século 19 Hegel. Ele é preciso ao apontar o seguinte: infelizmente a filosofia, diferentemente das outras ciências ou áreas do saber, não goza do fato de que seus problemas sejam evidentes ou facilmente percebidos. Assim, para que se compreenda estar diante de um problema filosófico, já precisa estar em marcha um certo tipo de reflexão filosófica. Traduzindo aqui o que disse Hegel, diferentemente dos problemas da medicina, da engenharia, do direito etc., problemas filosóficos precisam ser construídos, montados, para serem percebidos. E tal montagem ou construção requer já certa atividade filosófica, o que dificulta um pouco a coisa. Se alguém perto de você começa a sentir uma dor no peito que irradia para o braço esquerdo, não é necessário ter grandes conhecimentos de medicina para saber que você está diante de um problema médico. O mesmo ocorre se você nota uma rachadura profunda em uma viga no teto da sua casa e constata imediatamente que você tem um problema de engenharia.
“Não estamos habituados – ou, como prefiro dizer, com a mente ‘calibrada’ – a montar e, portanto, a reconhecer problemas filosóficos. Portanto, a ideia de que eles são difíceis ou distantes deve-se, antes de tudo, não à burrice ou incapacidade, mas àquela falta de calibragem mental.”
Gabriel Ferreira, doutor em Filosofia.
Ora, problemas filosóficos, embora existam e atravessem todas as esferas da nossa vida, não são perceptíveis do mesmo modo. Eles precisam ter suas partes explicitadas, encaixadas numa certa configuração e, então, visualizados como tais. Note que a ideia de construir problemas não é algo totalmente estranho a nós: estamos acostumados na escola com a construção de problemas matemáticos ou físicos. Quando os professores montam “problemas” de matemática, o que eles estão fazendo é o mesmo tipo de operação mental. Contudo, não estamos habituados – ou, como prefiro dizer, com a mente “calibrada” – a montar e, portanto, a reconhecer problemas filosóficos. Portanto, a ideia de que eles são difíceis ou distantes deve-se, antes de tudo, não à burrice ou incapacidade, mas àquela falta de calibragem mental. E o mesmo acontece quando vamos aos textos dos filósofos. Geralmente não os compreendemos porque não somos capazes de reconstruir os problemas com os quais eles estão querendo lidar. É, então, a partir daqui que devemos começar a tentar compreender filosofia. E é isso que persigo no meu curso.