Nesta semana, trago uma entrevista com Kátia Simone Benedetti, que ano passado lançou, pela editora Kírion, o livro A falácia socioconstrutivista: por que os alunos brasileiros deixaram de aprender a ler e escrever. Assim que comecei a ler, lembrei-me da famosa pergunta que Hannah Arendt lançou no famoso ensaio Crise da educação: “por que Joãozinho não sabe ler?”
Kátia, fale um pouco de sua trajetória profissional, conte-nos um pouco sobre sua formação, seus interesses, enfim, quem é Kátia Simone Benedetti?
Sou professora efetiva de Língua Portuguesa da rede municipal de ensino fundamental da minha cidade, Itatiba (SP), desde 2001; e, desde 2016, trabalho em uma pequena escola de zona rural que eu amo, lecionando para salas de 6.º a 9.º anos. Antes de começar a lecionar Língua Portuguesa e até o ano de 2012, fui também professora de Música (minha formação é em Letras, Psicologia e Música).
Nos primeiros anos, lecionei Língua Portuguesa apenas para 8.º e 9.º anos, e imediatamente percebi que algo muito estranho estava acontecendo: os alunos apresentavam um padrão de erros e de dificuldades nesses últimos anos do ensino fundamental que seria esperado de alunos de 3.º ano. E esse padrão não era exceção, mas regra. Mesmo os bons alunos o apresentavam, com poucas exceções.
Além disso, comecei também a ficar profundamente abalada com vários aspectos extremamente negativos do sistema de ensino e que eram comuns à realidade da grande maioria das escolas: a indisciplina; a desorganização; o império da lei do mínimo esforço; o foco nos maus alunos (não naqueles com dificuldades de aprendizagem, mas naqueles sem qualquer interesse pelos estudos); o nivelamento por baixo; a inversão de valores; a negação da natureza do ensino (da necessidade de se transmitir conhecimentos); o domínio de uma verborragia absolutamente inócua e inclusive, prejudicial no campo teórico, uma verborragia nada funcional, imprecisa e que servia apenas para dificultar a identificação e a solução dos problemas educacionais; e, por fim, a apatia e o conformismo da maioria dos profissionais da área...
“Percebi que algo muito estranho estava acontecendo: os alunos apresentavam um padrão de erros e de dificuldades nesses últimos anos do ensino fundamental que seria esperado de alunos de 3.º ano. E esse padrão não era exceção, mas regra.”
Kátia Simone Benedetti
Enfim, a cada dia em sala de aula, mais angústias eu sentia. Então, passei a tentar compreender melhor como havíamos chegado a esse ponto. E foi assim que os livros saíram. O primeiro foi o Dignidade Ultrajada; o segundo, Eu, professora e burnout, em parceria com a professora Iria De Marco; e este último, A falácia socioconstrutivista.
Em que aspectos o socioconstrutivismo é falacioso?
O socioconstrutivismo é uma perspectiva pedagógica ou, como seus adeptos gostam de denominá-lo, “um novo paradigma”. No entanto, é uma perspectiva falaciosa à medida que ignora as demandas da cognição infantil ao mesmo tempo em que afirma justamente ser condizente com elas... No que se refere à alfabetização e ao ensino da língua, o socioconstrutivismo assume a abordagem global de ensino, ou seja, a abordagem “top-down”, do contexto de uso da língua em direção à análise de sua estrutura e características.
A partir desta visão, o socioconstrutivista considera a criança como um especialista que já tem bagagem e funções cognitivas elaboradas para pensar criticamente sobre a natureza da linguagem e “levantar hipóteses” sobre seu funcionamento. Assim, pretere-se o ensino diretivo e explícito (do qual a criança precisa!) em favor da “autonomia do aprendiz”.
Na prática, o que temos é um sistema educacional que se recusa a oferecer o ensino de que nossas crianças precisam e que elas merecem, principalmente aquelas que só contam com a escola pública para superar sua condição socioeconômica precária e vulnerável.
Há um texto famoso de Hannah Arendt em que ela busca responder a seguinte pergunta: “por que Joãozinho não sabe ler? E segundo Kátia Simone Benedetti, por que Joãozinho não sabe ler?
Hoje as crianças brasileiras, em sua maioria e especialmente aquelas que têm alguma dificuldade ou déficit de processamento fonológico, não sabem ler e escrever adequadamente (e, portanto, têm profunda dificuldade na compreensão leitora) porque não estão recebendo o ensino de que necessitam.
Em primeiro lugar, a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), documento que rege a organização dos currículos em todo o país, sejam eles dos sistemas públicos ou privados de ensino, é inteiramente fundamentada em teorias pedagógicas (socioconstrutivistas) ultrapassadas e sem vínculos com pesquisa experimental. Sendo assim, esse documento elege o texto (gêneros discursivos) como unidade de ensino, desde a alfabetização. As crianças, antes de desenvolverem as habilidades cognitivas imprescindíveis para se alfabetizar (principalmente a consciência fonológica, a aquisição do princípio alfabético e a consolidação da decodificação grafema-fonema), são jogadas na dimensão textual e discursiva da linguagem, para, a partir de “questionamentos”, inferir as especificidades da natureza linguística. Em vez de receberem ensino, as crianças são “estimuladas a refletir”, são “questionadas”, são “imersas em “desafios” e “situações autônomas de aprendizagem”.
Acontece que nem as crianças têm condições para realizar essas “reflexões”, nem os conteúdos específicos da linguagem são trabalhados de maneira coordenada, inter-relacionada, progressiva e com tempo e profundidade suficientes para permitir o aprendizado. A dimensão discursiva dos textos é a mais abrangente e dentro dela incontáveis aspectos da língua se expressam: as crianças simplesmente não têm como analisar (e muito menos aprender adequadamente) tais aspectos apenas a partir de sua “imersão” em “situações autênticas” de leitura e escrita (principalmente antes de terem aprendido a ler e escrever...).
“Em vez de receberem ensino, as crianças são ‘estimuladas a refletir’, são ‘questionadas’, são ‘imersas em “desafios’ e ‘situações autônomas de aprendizagem’.
Kátia Simone Benedetti
Do primeiro ao último capítulo do seu livro, a grande preocupação é o problema da alfabetização. Gostaria que você falasse um pouco da abordagem do seu livro acerca desse problema.
Como professora de Língua Portuguesa de 6.º a 9.º anos, fico profundamente angustiada ao ver tantas crianças tendo a vida escolar (e, claro, a vida futura também) completamente destruída pela falta do ensino adequado. Crianças que não estão alfabetizadas e que, portanto, são incapazes de ler. Isso acontece porque passaram por um processo de alfabetização que priorizou o sentido das palavras e a análise discursiva de “situações de comunicação”, preterindo o ensino diretivo e explícito da natureza fonológica do sistema escrito: a escrita alfabética, antes de expressar o significado das palavras, expressa sua pronúncia, pois é a transcrição dos sons dos vocábulos. Muitas crianças chegam ao 6.º ano sem ter compreendido esse princípio básico da escrita: o princípio alfabético. Além disso, elas também avançam pelos anos escolares sem ter tido a oportunidade de desenvolver os níveis da consciência fonológica (e muito menos qualquer nível de consciência morfossintática), que é a capacidade de analisar a cadeia da fala, de reconhecer suas características e unidades sonoras (palavras, sílabas, fonemas). A maioria das crianças jamais consolida e automatiza o processo de decodificação grafo-fonêmica, fundamental para o desenvolvimento da leitura de palavras. Isso cria uma imensa barreira para o desenvolvimento da escrita ortográfica e da leitura fluente, base fundamental da compreensão leitora.
O que seria um currículo contraproducente e o qual seria o currículo mais adequado?
Um currículo adequado deve ser fundamentado em ciência cognitiva da leitura, considerando, principalmente, como a linguagem é processada e produzida pelo cérebro. A linguagem tem diversos níveis que fazem interface uns com os outros: o fonológico, o morfológico, o sintático, o semântico e o discursivo-pragmático. Nesse sentido – do processamento da leitura-escrita pelo cérebro –, o ensino deve iniciar-se exatamente pelo nível oposto ao que hoje é preconizado pela abordagem socioconstrutivista: deve iniciar-se pelo nível fonológico e por sua relação com o sistema escrito. A partir dessa base é que a criança terá condições de passar a desenvolver a consciência e o domínio dos demais níveis linguísticos, até atingir a capacidade de análise crítica dos incontáveis aspectos linguísticos que compõem um texto ou situação comunicativa.
“Diante da maneira como todo o ensino é organizado, diante da forma como os professores estão sendo formados, a educação nacional pode receber bilhões que sua qualidade não irá melhorar.”
Kátia Simone Benedetti
Além desse livro, você publicou, em 2013, Dignidade ultrajada: ser professor do ensino público nos dias atuais. A dignidade do professor de escola pública continua ultrajada?
Se considerarmos a dignidade daqueles que desejam ensinar e que se preocupam realmente com a qualidade do trabalho que realizam, sim. Nesse livro eu abordei especificamente os problemas da estrutura educacional (fundamentos teóricos, organização institucional, metodologias, valores, currículos etc.) que não apenas solapam o trabalho docente, como também prejudicam o aprendizado dos alunos que desejam e precisam aprender. É uma ordem de coisas que precisa ser mudada e que não será se aqueles que “lutam por educação” ficarem insistindo apenas em “mais investimentos”.
Diante da maneira como todo o ensino é organizado, diante da forma como os professores estão sendo formados, a educação nacional pode receber bilhões que sua qualidade não irá melhorar. É claro que o problema de falta de infraestrutura das escolas é profundo e impacta muito a qualidade do ensino; contudo, em minha percepção, mudanças na formação dos professores (atualizada a partir de ciência experimental) e em toda a estrutura curricular e metodológica são a necessidade mais urgente.
É por isso que tenho tentado divulgar o conteúdo do Falácia nas redes sociais: mais do que tudo, quero que as pessoas se conscientizem sobre onde exatamente está a causa da baixa qualidade do ensino brasileiro. E na própria educação há uma barreira imensa para aceitar isso, pois a maioria dos profissionais da área (professores, coordenadores, psicopedagogos, diretores, supervisores) não admite que a própria formação profissional é falha e está desatualizada, bem como são equivocadas suas premissas. Minha intuição é a de que as mudanças na educação precisarão acontecer de fora para dentro, pois o sistema não mostra sinais de superar suas deficiências por si mesmo.
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