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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Espantalhos no labirinto de espelhos

(Foto: Katherine Evans/FreeImages)

Um dos maiores riscos do engajamento político de redes sociais é o de nos tornarmos imagem e semelhança do que combatemos. Em termos políticos, projetamos o reflexo do que há de pior em nós a fim de garantir uma suposta pureza do que haveria de melhor. A tendência é a de sermos conformados pelos mesmos hábitos mentais dos nossos inimigos imaginários. O que não passa de espantalhos. Digo “inimigos imaginários” porque as redes sociais potencializam a crença de que temos inimigos e eles são muito mais perigosos do que de fato seriam os nossos interlocutores de carne e osso.

Nessa atmosfera saturada pela autoimagem, o inimigo imaginado é sempre uma “ideia” considerada como potencialmente perigosa. No interior das redes, o objetivo é frear os efeitos ruins aniquilando tudo o que abominamos, sem nos darmos conta de que também vamos incorporando e reproduzindo todos os vícios do que supostamente combatemos. Sem dúvida nenhuma a psicologia social, ciência metodologicamente consagrada, explica tudo isso com muito mais clareza e rigor, mas vou me arriscar. Afinal, a atitude filosófica convida justamente a isto: frear certezas e questionar fantasias.

A partir da experiência de aprisionamento em curso nas redes, considero a expressão “bolha”, usada como referência ao sujeito que vive fechado no seu próprio mundo digital, uma expressão ruim, quase infantil, para dizer a verdade. A metáfora da “bolha” tem sido usada com certa frequência, e sem nenhum cuidado teórico, para descrever a forma como consumimos informação e nos relacionados nas redes sociais. Nesse ambiente digital, o sujeito apenas receberia o conteúdo que confirma a sua visão de mundo. Numa ideia mais ou menos clichê da coisa, como li certa vez: “sua bolha seria a rede de segurança na qual você se cerca todos os dias. As rotinas e cronogramas que fazem a sua vida permanecer ‘estável’”. Frase bonita, mas equivocada.

A analogia da bolha falsifica o tipo de deformação que os nossos hábitos mentais vêm sofrendo

Segundo tal metáfora, estar preso na própria bolha seria como ser prisioneiro de si mesmo num ambiente transparente. No entanto, e é isso o que eu questiono, a ideia de “bolha” transmite a falsa experiência de que dentro das redes sociais vivemos protegidos nos limites de uma película transparente. Se o que nos protege é transparente, podemos enxergar o que há do lado de fora desse invólucro. Bolha, nesse caso, seria apenas sinal de isolamento e recusa. Um jeito covarde de não se arriscar.

Contudo, a analogia da bolha falsifica o tipo de deformação que os nossos hábitos mentais vêm sofrendo com o consumo de informações em redes sociais. O condicionamento, determinado pela arquitetura baseada no sistema de algoritmos, é uma forma de nos manter prisioneiros de informações coletadas dos nossos hábitos de pesquisa, curtidas e compartilhamentos. Não só para a economia, mas também politicamente é um instrumento poderoso. Para provar isso, recomendo a leitura do excelente livro de Benjamin Loveluck Redes, liberdade e controle: uma genealogia política da internet, recém-publicado pela editora Vozes.

De fato, as redes sociais potencializam a autoestima e a autoafirmação. E aqui no sentido tóxico de criar hábitos mentais reativos e irrefletidos. Já os hábitos reflexivos e meditativos não fazem parte desse ambiente. Quando entramos nessa atmosfera virtual, dificilmente procuramos questionar e confrontar nossas verdades. Como diz meu amigo Gabriel Ferreira, nas redes, as pessoas são imunes à argumentação racional. Em vez disso, reagimos emocionalmente dando likes ao que nos que agrada. Dispositivo sedutor, convenhamos. Por isso que eu penso que a melhor analogia para descrever essa nova situação mental é a do espantalho no labirinto de espelhos.

Dentro desse salão de espelhos somos sujeitos sem personalidade

A metáfora do labirinto de espelhos descreve com mais precisão o ambiente em que vivemos por pelo menos duas razões. Primeiro, porque a ideia de “labirinto” mostra que não há transparência tanto nos corredores pelos quais circulamos quanto em relação ao que se passa do “lado de fora”. O que significa que não há clareza nas experiências internas e muito menos nas externas. O que nos separa do mundo não é uma película transparente, mas uma rede de paredes interconectadas e todas elas cobertas de espelho – o que produz ainda mais a falsa sensação de profundidade e liberdade.

A ideia de labirinto de espelho reforça a experiência de que vivemos em um jogo com muitas imagens projetadas instantaneamente, de que há dinamismo e vida nisso tudo. Aqui, cada parede produz o efeito sedutor de que o mundo nada mais é do que uma extensão da nossa personalidade e de que a nossa personalidade é uma extensão do mundo. No caso do espantalho, funciona como a projeção de uma ideia que consideramos perigosa para a estabilidade desse mundo supostamente transparente, sincero e dinâmico.

O excesso de si no interior desse ambiente labiríntico e espelhado cria um efeito paradoxal: a despersonalização dos indivíduos. Dentro desse salão de espelhos somos sujeitos sem personalidade. A consequência moral é óbvia: uma terra de ninguém onde cada um fala o que quiser sem assumir qualquer tipo de responsabilidade. Meu mundo, minhas regras. O efeito psicológico de consumir em excesso o reflexo de tudo aquilo que de antemão já se acredita verdadeiro projeta em nós uma falsa sensação de liberdade; não obstante, vive-se literalmente no interior de uma prisão.

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