Retrato de Immanuel Kant.| Foto: Wikimedia Commons

O filósofo alemão Immanuel Kant pensava que toda história humana “tem por natureza uma intenção suprema” e será “realizada ao final” em um “estado cosmopolita universal”. Obviamente, trata-se de um sonho moderno que herdara dos humanistas do renascimento: a crença no ideal utópico como imagem reguladora de um futuro humano pacífico e promissor. Aquele futuro que superará a nossa própria humanidade decaída no malévolo estado de natureza. Contudo, como agostiniano, suspeito de toda proposta de final feliz da história contra a maldade intrínseca do homem; esta segue sendo, na minha humilde opinião, o maior de todos os mistérios.

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Como dirá o filósofo e historiador italiano Paolo Rossi, em Esperanças, “não me iludo”. Não me iludo com esses filósofos que há muito tempo “ostentam o próprio saber sobre a história universal, o destino da civilização, o sentido da técnica em geral, o significado global do saber científico, aqueles que sabem como e quando começaram nossos problemas e onde iremos inevitavelmente acabar”. Afinal, muitos deles “falam com segurança, às vezes com arrogância, sobre o Futuro como um Paraíso ou como um Inferno”. Tem para todos os gostos.

No caso de Kant, a crença no progresso da humanidade foi expressa em um pequeno texto de 1795 com o título de: A paz perpétua, um projeto filosófico. Kant não foi o único filósofo a propor projetos dessa natureza. Há muitos deles, e todos eles devem ser inseridos no contexto das relações internacionais modernas. Por exemplo, um dos textos inaugurais dessa tradição foi o tratado do Abade de Saint-Pierre: Projeto para tornar a paz perpétua na Europa, de 1713, publicado em três volumes. Há outros; muitos outros. No meio de tanto sangue e destruição, nada como sonhar com a paz.

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No interior da dinâmica do sonho de paz perpétua surge um dos maiores pesadelos do século 20: o horror das guerras mundiais

O fato é que o iluminismo moderno desenvolveu a crença no incondicional esforço humano para tornar “o estado de paz um dever imediato, que, porém, não pode ser instituído ou assegurado sem um contrato dos povos entre si”.  A proposta kantiana de realização desse dever — e aqui reside um dos desafios de quem luta pela paz perpétua amparado apenas pela razão — sugere que essa paz precisa ser assegurada mediante um contrato de “federação do tipo especial, que se pode denominar federação de paz [...]”. Lida no contexto do contratualismo moderno, a instigante pergunta formulada por Kant foi: “é possível conceber um ‘contrato social’ entre Estados?

Essa “liga de nações”, que superará a situação anárquica entre os Estados análoga aos indivíduos no estado de natureza, não pretende acabar com uma guerra, mas acabar com “todas as guerras para sempre”. A paz perpétua e universal entre os Estados surge como uma sedutora ideia reguladora de um final da história.

Mas fica uma dúvida: a tarefa de uma federação mundial em assegurar o fim de todas as guerras para sempre não colocaria fim a todas as guerras sem ter de assumir para si a tarefa de uma guerra de mobilização universal e total? Não seria o conceito de “guerra total” uma conclusão lógica dessa pretensão iluminista? Nós, que sobrevivemos ao século 20, mais do que ninguém, podemos perguntar isso com certa irônica melancolia.

Como nos alerta o historiador David A. Bell, em Primeira guerra total, no interior da dinâmica desse sonho de paz perpétua surge um dos maiores pesadelos do século 20: o horror das guerras mundiais. Duas guerras verdadeiramente apocalípticas com pretensões redentoras que mobilizaram toda a sociedade para a destruição completa dos inimigos. Diz Bell:

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O sonho da Paz Perpétua e o pesadelo da Guerra Total estiveram vinculados de maneiras perturbadoras e complexas, cada qual a sustentar o outro. De um lado, uma ampla e persistente corrente de opinião pública continuou a ver a guerra como um fenômeno fundamentalmente bárbaro que deveria desaparecer de um mundo civilizado o mais rápido possível; de outro, houve uma tendência recorrente e poderosa a caracterizar os conflitos que efetivamente surgem como lutas apocalípticas a serem travadas até a destruição completa do inimigo e que poderiam ter sobre seus participantes um efeito purificador, quiçá redentor.

Convenhamos que não há qualquer possibilidade de deduzir da razão um horizonte perpétuo de paz. Tal projeto será fadado ao fracasso. O sonho de paz perpétua não passa disso: um sonho. Como nada tem duração perene, esse tipo de projeto tende a subverter a própria ordem da história, da política e da guerra. Quando penso nisso, toda visão pacifista de mundo parece brotar de uma crença otimista e ingênua na razão. Mas que fique bem claro, isso não é uma tese. Hesito em bater o martelo. Eu também tenho meus sonhos.

De qualquer maneira, a imprudência em representar a esperança futura no presente, de tornar demasiadamente familiar o objetivo que está lá na frente de forma difusa, pois está separado por um abismo de nós, fornece ao homem uma arrogância que pode ser bem perigosa quando se torna a única medida de ações políticas que atuam pela promessa de paz. São esperanças insensatas, já que, nesse caso, a única luta espiritualmente legítima segue sendo aquela que é travada no silencio da vida interior.