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Estado racista

Pixabay (Foto: )

Mitologias raciais ensinam o conflito de raças e consideram a inimizade absoluta o caminho da libertação e supremacia. Todas têm origem em pseudociências, fantasias populares e em mais um monte de bobagens ideológicas. Quem acredita em “unidade da raça”, “espaço vital” ou “pureza racial”, acredita em mentiras. Pangermanismo e pan-africanismo, comparados com astronomia, equivalem à teoria da Terra Plana. Com a diferença crucial de que essas teorias influenciaram e influenciam políticas públicas que devem ser garantidas por forças coercitivas do Estado.

Pensem no lamentável caso da sociedade brasileira. Por causa de questões sociais e histórias complexas, o número de homicídios envolvendo pessoas negras é escandaloso. Mas isso não implica racismo. Não seria racismo apenas se a motivação da violência fosse a discriminação racial? O caso é que nem toda violência contra uma pessoa negra é racismo. A violência contra uma pessoa em virtude de ela ser negra, aí sim, configura crime de racismo. Mas quem se importa com os motivos de alguém quando a vítima vira estatística?

Contarei um pequeno causo. Em 1992, minha desafortunada irmã e eu fomos espancados por aproximadamente uns treze marmanjos. Pelo menos nove eram “negros”. Eu nunca julguei que o motivo tenha sido por questões raciais. Jamais passou pela minha cabeça que o que aconteceu comigo tenha sido em virtude de sermos brancos. Embora, enquanto batiam, gritavam: “mata esse alemão”, “mata o branquelo”.

A intenção dos moleques não era a de me matar em virtude da minha raça. Ninguém ali dizia: “queremos destruir essa raça desses piolhos”, “essas baratas brancas merecem morrer; são nocivos ao desenvolvimento do nosso espaço vital”. Não havia a inimizade absoluta a ponto de se exigir o extermínio do outro por razões raciais. Eu duvido que eles incorporaram as lições de Frantz Fanon de que “a liberdade é uma luta assassina e decisiva”, “nossa missão histórica é sancionar todas as revoltas”, “temos a África conosco”. A cabeça deles não fora povoada com as lições da elite intelectual que marcha pela substituição de uma espécie de homem por outra.

Era só briga de rua. Lembro-me dos vários socos na cabeça e do único pensamento: ficar de pé e ajudar minha irmã.

O motivo da briga começou por que um rapaz, branco — isso só tem sentido descritivo —, tentou desapropriar meu boné. Por impulso, eu consegui me defender retribuindo com um soco no meio da cara dele. Sem insinuar qualquer traço de darwinismo, tratava-se de puro instinto de preservação. Os amigos dele, a maioria de pessoas negras — isso também só tem sentido descritivo —, simplesmente espancaram minha irmã, que por um mero acaso estava comigo, e eu. Sem motivos nobres, ideológicos ou messiânicos — se é que existem motivos nobres quando se trata de derramar sangue alheio. Fomos vítimas de racismo? De jeito nenhum.

Por outro lado, a título de comparação, hoje seria inimaginável pensar em um bando de moleques, ao espancar outro numa briga de rua qualquer, gritando: “mata esse negro”. Considerando que o motivo da briga não tem nada a ver com questões raciais, da conquista do espaço vital, da mudança da ordem do mundo, por que acusaríamos esses moleques de racistas? As respostas são inúmeras. Duas chamam atenção: “racismo velado” e “racismo estrutural”. Questão de oportunidades. Até nas brigas de ruas não se pode esquecer a luta pelo reconhecimento na dialética do senhor e do escravo, a luta sangrenta para se “desfazer o feitiço” do colonizador sob o colonizado.

Quando alguém afirma ser o Brasil um país de profundas estruturas racistas, a pergunta mais importante que deveria ser respondida é a seguinte: quais as bases empíricas para afirmar que cada ação, cada ato de violência e cada homicídio tratado como racismo é, de fato, racismo? O racismo ficou muito genérico e pouco consistente. A noção de “racismo estrutural”, que condena todos sem responsabilizar ninguém, funciona em um quadro semântico da ideologia do conflito. “Estruturas” não aparecem nos dados empíricos, mas são presumidos como categorias interpretativas para todo esse estado de coisas.

Dados empíricos mostram os casos concretos e apresentam estatísticas. O conjunto de casos é interpretado a partir de teorias sociais que “enxergarão” os casos como exemplaras vivos das relações estruturais. A ideia de “estrutura” anula a especificidade moral de cada caso de violência.  As estruturas não estão nos dados, mas para esse modelo teórico, elas operam de maneira oniscientes, onipotentes e, o mais importante, inconscientes — não tem como fugir das “estruturas”.

Queira ou não, viver em uma sociedade com estrutura racista significa, mesmo contra a nossa vontade, ser inevitavelmente racista. Não há saídas morais e esforços pessoais para romper com o ciclo permanente da guerra entre brancos e negros. As escolhas individuais, os motivos morais, a autonomia e a subjetividade movem tanto quanto a fumaça move uma locomotiva. São epifenômenos de uma máquina impessoal e indiferente. Quem move a história são as estruturas; locomotivas desgovernadas. A subjetividade moral, com suas deformidades, é irrelevante para os teóricos do racismo estrutural.

Do ponto de vista da experiência subjetiva, da capacidade de decidir livremente e das responsabilidades morais e penais exigidas para todo indivíduo, não faz o menor sentido falar em “preconceito velado” ou “racismo estrutural”. Toda discriminação racial precisa ser, para ser uma forma de discriminação, declarada. Velado aqui não é uma característica de “sutiliza”, umas “piscadelas atrevidas” com objetivo de anular o valor de alguém, mas o que consegue camuflar estruturas e dispositivos discriminatórios de poder. Não há necessidade de nomear o racista, basta acusar suas “raízes profundas”. Tudo é racismo. A descolonização moral não precisar identificar, julgar e condenar o racista concreto, basta as políticas públicas.

A facilidade de julgar todas as relações sociais como sendo a expressão do “racismo estrutural” impressiona os mais céticos. Você, eu, ele, ela, aquele, aquele outro ali não somos racistas declarados. Na verdade, cada um de nós incorpora a forma mais perversa de racismo: o racismo que só o detector de “racistas” pode acusar. Como se combate racismo estrutural? Em breve com políticas de controle do pensamento, por enquanto se contentam com um Estado declaradamente racista.

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