No texto da semana passada, apresentei o dilema ético entre deontologia e consequencialismo na formulação de políticas públicas, especialmente no contexto das cotas raciais no Brasil. Mostrei que a deontologia foca na adesão a princípios morais universais, considerando ações corretas ou erradas por si sós, enquanto o consequencialismo avalia a moralidade das ações pelos seus resultados, justificando medidas que maximizam o bem-estar coletivo mesmo à custa de princípios fundamentais. O debate sobre cotas raciais no Brasil ilustra esse conflito.
A jornalista e diretora de comunicação da Casa Sueli Carneiro, Natalia Carneiro, publicou um artigo na Folha de S.Paulo no qual critica a postura do jornal em relação às cotas raciais. Em essência, a Folha defende as cotas sociais em detrimento das raciais. Não pretendo discutir o mérito da posição adotada pela Folha. Meu objetivo é destacar como o argumento de Natalia Carneiro evidencia uma postura comum entre os defensores das cotas raciais: a habilidosa arte de usar estatística e criar espantalhos.
A mera apresentação de porcentuais de aumento na admissão de estudantes pretos e pardos no ensino superior não é suficiente para afirmar categoricamente a efetividade das cotas raciais
Natalia Carneiro, após analisar três editoriais da Folha de S.Paulo, concluiu que “ficou evidente a desconsideração do jornal pela subjetividade das pessoas negras e o contexto histórico-social no qual as cotas raciais foram propostas”. Em outras palavras, ela vê a posição do jornal contra as cotas raciais como uma “falta de interesse em reconhecer a subjetividade das pessoas negras”. Essa percepção é baseada na publicação, pelo jornal, de vários artigos que apontam as cotas sociais, e não as raciais, como a verdadeira solução. O aspecto intrigante do texto de Natalia Carneiro é a ausência de uma definição clara sobre o que exatamente constitui a “subjetividade das pessoas negras” e por que a preferência da Folha pelas cotas sociais representaria uma desconsideração desse conceito. Ela não diz uma única palavra sobre o assunto.
Em vez disso, ela passa a citar uma série de dados estatísticos e atacar quem é contrário. No primeiro momento, ela apresenta a situação social antes da implementação das políticas de cotas: “comecemos com dados objetivos do IBGE: em 2003, estudantes brancos ocupavam 72,9% das vagas no ensino superior. Pretos e pardos, 0,4%, igualmente”. E concluiu que “os editoriais da Folha, nem naquela época nem agora, expressaram preocupação com a disparidade da desigualdade racial no acesso à universidade”.
No segundo momento, ela apresenta os dados que demonstram a mudança social após a política de cotas: “De acordo com o Inep, o número de estudantes pretos e pardos nas universidades federais chegou a 41% em 2010 e aumentou para 52% em 2020”. E concluiu “que as cotas raciais têm sido efetivas no enfrentamento às desigualdades raciais no acesso à educação superior”.
O interessante é notar que esse tipo de análise de dados estatísticos, uma análise meramente quantitativa, não diz absolutamente nada sobre a “subjetividade das pessoas negras”. Pelo contrário, reduz tudo a números que favorecem a posição dela, especialmente. Ou seja, uma forma de instrumentalizar as pessoas é quantificá-las em categorias abstratas. Até porque a mera apresentação de porcentuais de aumento na admissão de estudantes pretos e pardos no ensino superior não é suficiente para afirmar categoricamente a efetividade das cotas raciais. Além de outros fatores que possam ter contribuído para essas mudanças, o que esses números revelam são apenas... números. Nada mais.
Diferentemente dos dados quantitativos, que se concentram em números e estatísticas, os dados qualitativos poderiam explorar as percepções, as histórias e os significados das experiências individuais e coletivas. Isto é, trataria com mais interesse as “subjetividades” das pessoas. Mas ela preferiu ignorar a subjetividade das pessoas para fazer proselitismo acusatório.
Dizer que um dos principais argumentos de quem combatia as cotas raciais era “que estudantes negros não conseguiram acompanhar os cursos” é, no mínimo, desonesto
O que mais me chamou a atenção foi como ela reduziu a posição dos críticos das cotas raciais. Segundo ela, “em 2003, um dos principais argumentos de quem combatia as ações afirmativas era que estudantes negros não conseguiriam acompanhar os cursos. Isso não aconteceu. Estudantes cotistas de universidades federais têm desempenho melhor ou similar ao dos demais estudantes”. Dizer que um dos principais argumentos de quem combatia as cotas era “que estudantes negros não conseguiram acompanhar os cursos” é, no mínimo, desonesto.
Este tipo de simplificação tem um único objetivo: transformar qualquer crítica às cotas raciais em uma caricatura, retratando o crítico como um indivíduo racista e preconceituoso. Essa abordagem desvia a atenção de discussões mais sérias sobre os méritos e desafios das ações afirmativas, incluindo questões sobre a melhor forma de alcançar equidade educacional, o impacto das cotas na qualidade do ensino e sua inserção no contexto mais amplo de políticas de inclusão social.
O fato é que as alegações de que as oposições se baseiam unicamente em dúvidas sobre a capacidade acadêmica de estudantes negros desconsideram outros argumentos pertinentes, como aqueles que apresentei na semana passada sobre os fundamentos deontológicos da equidade. Cotas raciais são discriminatórias no princípio. E quem está duvidando da capacidade acadêmica de pretos e partos é quem cria um caminho alternativo, não acadêmico, para eles ingressarem nas universidades.
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