Terminei meu último texto com uma pergunta: entre individualismo relativista e populismo autoritário, como resolver o dilema no interior da democracia? Essa pergunta diz respeito aos princípios de uma ordem democrática. Afinal, a democracia é expressão de uma vontade coletiva ou a garantia de direitos a minorias? Tal problema não muda o fato de que o âmbito essencial da política é a soberania. Quem, em última instância, tem o poder de tomar decisões políticas?
Eu começaria com uma declaração de fé – obviamente não de uma fé religiosa: a garantia da democracia depende de crenças nas instituições democráticas. E vale ressaltar a consciência de que não pode haver esperanças de que instituições democráticas tragam o reino dos céus aqui para a terra, pois isso seria a perversão da política. Instituições democráticas apresentam-se como mediadoras de conflitos e, em virtude desta finalidade, seus princípios precisam ser universais. Pelo menos os princípios de dignidade e liberdade.
Ou seja: não se trata apenas de elementos formais, vazios em termos de conteúdo de uma comunidade moral, um palco neutro em que os conflitos ideológicos ocorrem sem ferir ninguém. Mais do que isso, instituições democráticas mediadoras são substantivas justamente por sustentar o princípio de dignidade e da liberdade de cada ser humano que compartilha sua vida em sociedade.
Infelizmente, os autoritários desejam combater fake news com a força do porrete e não com a força da informação e do diálogo
Nesse sentido, a democracia deve se opor a toda forma de adversidade ideológica que se dá pelo embate delirante do “nós” contra “eles” enquanto aniquilação do adversário como o mal. Na democracia nenhum adversário deverá ter a sua dignidade pessoal diminuída. O sentido das relações democráticas não pode ser apocalíptico. Se as ideias dos meus adversários ameaçam a estrutura do sistema democrático, então são suas ideias que precisam ser corrigidas. Há gente que acha que os outros devem ser aniquilados para que suas ideias impuras não contaminem a ordem social.
Ora, um dos grandes problemas da democracia, portanto, é a comunicação. Noutras palavras: o alicerce de toda ordem democrática é a capacidade humana de se comunicar e se direcionar à verdade. Não à toa, desde pelo menos Platão o núcleo da fragilidade democrática é precisamente a linguagem. A força – bem como a fraqueza – da democracia não está no porrete, mas na palavra.
A noção de que precisamos combater fake news – inverdades que circulam no espaço democrático com potencial de criar certo grau de desordem – é um exemplo de que o problema central da democracia é a comunicação. Infelizmente, os autoritários desejam combater fake news com a força do porrete e não com a força da informação e do diálogo.
O exercício da democracia na era das redes sociais precisa ser diagnosticado como um sintoma muito mais sério, que revela um fato da condição humana. O problema, nesse caso, não está nas fake news como ameaças à democracia, mas no horror ao tédio. Em um texto chamado Bases morais necessárias à comunicação numa democracia, o filósofo Eric Voegelin elaborou tal problema nos termos de uma “comunicação intoxicante”:
“A comunicação como intoxicante faz parte dos fenômenos que Pascal tratou sob o nome de divertissements. Em suas Pensées, Pascal explorou as ansiedades da vida, a escuridão que invade a alma, o vazio que resulta em tédio e finalmente em desespero, quando a alma não é ordenada pela fé. Para fugir a esses estados de alma, o homem desenvolve divertissements – dispersões que objetivam superar o vazio pela atividade. As dispersões específicas tratadas por Pascal – as atividades sociais da sociedade cortesã do século 17 – não nos interessam aqui. No entanto, este problema persiste ainda hoje, quando existem instrumentos industriais desenvolvidos para superar a ansiedade e o tédio de uma sociedade de massa. A prática excessiva de frequentar cinema, ouvir rádio e, mais recentemente, ver televisão tem o caráter de um divertissement, no sentido de Pascal, de uma atividade intoxicante que afogará a ansiedade de uma vida vazia.”
Esse texto de Voegelin foi publicado na década de 50; isso significa que podemos adicionar nas “práticas excessivas”, que funcionam como instrumentos para “superar a ansiedade e o tédio de uma sociedade de massa”, as redes sociais e, consequentemente, a divulgação de fake news como “atividade intoxicante”. O uso excessivo de redes sociais como finalidade política é só a superfície do problema. Espero no próximo texto refletir um pouco mais sobre isso.