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Daquelas grandes buscas de definições teóricas do fascismo como fenômeno político que se desenvolveu no século 20, uma das mais completas e instigantes, sociologicamente falando, é a do sociólogo americano Michael Mann em seu livro Fascistas. Mann define fascismo nos termos de seus “valores essenciais” mais abrangentes, tanto no nível da crença e ações quanto no nível da organização do poder político: O fascismo é a tentativa de construção de um Estado-nação transcendente e expurgado por meio do paramilitarismo.
Como teórico da política preocupado com as deformações da política no século 20, sobretudo o problema da violência (vejam, por exemplo, o seu livro The Dark Side of Democracy: Explaining Ethnic Cleansing), Mann busca entender o processo de ascensão do fascismo histórico e responder a perguntas do tipo “que tipo de pessoa podia tornar-se fascista?” e “haveria ainda fascistas entre nós, capazes de ressurgir e dominar mais uma vez?”
Para ele, o importante, primeiro, é explicar os cinco termos-chave subjacentes à definição do fascismo à luz desses “valores essenciais”, a saber: nacionalismo, estatismo, transcendência, expurgo e paramilitarismo. Apontarei apenas um resumo de cada característica.
Os fascistas cultuam o poder do Estado corporativo autoritário, pois ele é justamente a entidade capaz de resolver as crises fundamentais e gerar desenvolvimento
Nacionalismo. O nacionalismo será definido nos termos de uma experiência de compromisso com a nação. O fascista, nesse sentido, é aquele que tem um “profundo senso de compromisso populista com sua nação” experimentada como unidade “orgânica” ou “integral” – esse compromisso com a unidade integral não deve confundido com a virtude do patriotismo, por exemplo. Dessa experiência, decorrerá a reação contra “inimigos”, pois é no contexto da experiência nacionalista que surgem os ideais de “renascimento”, “restauração” ou “revivescência” a partir da obsessão com a “pureza” racial, étnica ou cultural.
Embora “nação” seja uma experiência típica da era moderna, o compromisso nacionalista com sua nação organicamente concebida pretende resolver esse paradoxo histórico nos termos da restauração de valores muito antigos, ou de resgatar uma era perdida, e reabilitá-los à luz de um novo mito de criação. A revivescência da nova nação recria aqueles imemoriais momentos de glória. A unidade orgânica tem dimensão não apenas social como histórica.
Estatismo. Segundo Michael Mann, os fascistas cultuam o poder do Estado corporativo autoritário, pois ele é justamente a entidade capaz de resolver as crises fundamentais e gerar desenvolvimento social, econômico e (vale a pena destacar isto) moral. O Estado fascista se torna o representante da nação como unidade orgânica. O Estado nacionalista dos fascistas encarna “a vontade única e coesa” que se desenvolverá a partir da noção de obediência, como descreve Mann, ao “princípio de liderança” e às metas de “transformação total da sociedade”.
Transcendência. Segundo Mann, os fascistas rejeitam 1. as ideias conservadoras de que a ordem social é harmoniosa; 2. as ideias liberais e social-democratas “de que os conflitos entre grupos são características normais da sociedade”; e, por fim, 3. as ideias esquerdistas contra o capitalismo. Os fascistas nasceram, ao mesmo tempo, na direita, no centro e na esquerda, “contando com sustentação em todas as classes”. Pois “o nacionalismo de Estado fascista seria capaz de transcender os conflitos sociais”. Em outras palavras: “a transcendência era o esteio do programa eleitoral”.
Michael Mann faz uma abordagem extremamente detalhada dessa característica e da relação pragmática dos fascistas com outros grupos, principalmente com certo tipo de capitalismo. De qualquer modo, vale destacar que o “deslocamento das metas de transcendência” é, segundo Mann, o que “agravava o caráter homicida do fascismo”.
Expurgos. Esse conceito explica como “eram vistos os inimigos, os adversários precisavam ser eliminados, sendo a nação expurgada de sua presença”. Trata-se, pois, da “agressão fascista em ação”. No meu livro A Imaginação Totalitária, concentrei minhas análises para compreender a forma mental da disposição para agir politicamente como justificativa dessa “transformação total” em três níveis: o homem, o conhecimento e a política. O resultado foi a descoberta de como a ação política se manifesta como violência redentora (meu conceito para expurgo).
Os fascistas nasceram, ao mesmo tempo, na direita, no centro e na esquerda, “contando com sustentação em todas as classes”
Paramilitarismo. Para Michael Mann, essa é uma característica que revela “ao mesmo tempo um valor fundamental como uma decisiva forma organizacional do fascismo”. Sobretudo porque cresce de forma espontânea de baixo para cima como “a vanguarda da nação”. De toda descrição de Mann sobre o paramilitarismo, destaco esta: “os fascistas sempre apresentam sua violência como defensiva, mas bem-sucedida, capaz de derrubar inimigos que representariam a verdadeira origem da violência”. Os “soldados fascistas” atuam como se fossem realmente vítimas.
Para terminar, é preciso dizer que essas cinco características essenciais podem estar “espalhadas pelo mundo, provavelmente em diferentes combinações”. Ou que faz alguns movimentos serem mais ou menos fascistas. Dificilmente hoje vamos encontrá-las de forma pura. De qualquer maneira, Mann deixa uma sugestão interessante sobre o uso do rótulo: “é improvável que venham a se denominar fascistas movimentos comparáveis que surjam no futuro”, já que “na linguagem contemporânea, a palavra é usada como um xingamento” e, consequentemente, como “invectiva vaga contra aqueles de quem não gostamos”.
Curiosamente, quando Michael Mann publicou seu livro (2003), ele descreveu que certos movimentos populistas representavam uma “característica persistentemente minoritária da política na Europa Ocidental”. E que esses populistas, já na época, evidenciam uma “certa ambiguidade” em pelo menos três níveis das principais características do fascismo. Por exemplo, “denunciam em termos genéricos ‘o sistema’ e ‘o establishment’, assim como a ‘impostura’ de uma democracia liberal dominada pelos partidos do establishment, que, segundo eles, perderam contato com a vida concreta dos cidadãos comuns”.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos