No arranjo de sociedades livres e democráticas, mediante discursos retóricos e argumentos buscamos convencer os outros de que o nosso político é a melhor opção para o país, que o seu partido tem o melhor projeto de governo e que, por fim, votar nele, e somente nele, será uma excelente escolha. Tudo isso, procuramos fazer com legítima convicção sem renunciar a certa dose de paixão. No espaço democrático, funciona assim: quem tem o melhor argumento e conseguir convencer o maior número de pessoas ganha. Há muitas técnicas de engajamento e persuasão envolvidas, e nessas horas os marqueteiros esbanjam sabedoria.
Contudo, há um recurso retórico que faz a democracia se tornar um verdadeiro circo de horrores: eu estou com a verdade, mas o meu adversário é um risco para a democracia. Até aí, nada de tão novo. Em maior ou menor grau de autoestima, todos nós temos a convicção de estarmos do lado certo da história por defender os verdadeiros valores de liberdade e justiça. Por mais dúvidas que eu lance e por mais que coloque minhas opiniões sob suspeita, o mundo certamente seria um lugar perfeito se todas as pessoas pensassem de um jeito parecido com o meu, fossem dotadas do mesmo senso estético e inteligência...
Se eu imaginar que qualquer um que não estiver comigo for um fascista, lamento constatar, mas o fascista sou eu e não todos os outros.
Aqui, obviamente, a política se distancia do amor pelo futebol. No futebol, preciso dos meus adversários para tirar sarro quando o time deles perde. Além disso, ninguém consegue convencer o adversário de nada. Jamais mudarei de time em virtude de argumentos. No mundo político, ao contrário, adversários ameaçam a estabilidade do meu conforto e segurança. A ideia de que a natureza da política é a disputa entre amigos e inimigos só faz sentido na medida em que todos os inimigos estejam devidamente enforcados pelo bem da nação. Nesse sentido, a política não seria a disputa entre amigos e inimigos, mas a taxativa autoafirmação de que o outro nem sequer poderia existir, já que a existência dele é uma ameaça à democracia. Logo, a política nada mais seria do que a arte de conviver só com iguais.
Agora, algo ligeiramente novo tem acontecido na disputa eleitoral do Brasil: a democracia de um único projeto legítimo, de um único político capaz de restaurar o reino de paz e abundância nessa terra devastada pela miséria e medo. Essa nova forma de democracia se apresenta nos seguintes termos: “Precisamos defender a democracia, garantir os direitos fundamentais das pessoas, a liberdade de expressão e lutar bravamente contra a intolerância. Então, se você não votar no meu político, o único capaz de restaurar o reino da justiça e da paz no mundo, você só pode ser um fascista!” Ou seja: fascista é todo aquele que não escolher o meu candidato.
Já não se trata mais de dizer que um determinado grupo ameaça a ordem democrática, mas de alegar que o único grupo verdadeiramente democrático é o meu; e que, portanto, assim como o inferno, fascistas são todos os outros.
O fato é que isso não pode ser chamado de retórica eleitoral, mas da mais pura intimidação. Claro, no frigir dos ovos, paradoxalmente, trata-se de retórica fascista. E aqui eu me lembro de que o problema não é nada novo. Foi tratado de forma primorosa e cirúrgica por George Orwell em seu ensaio O que é fascismo? Já em 1944, ele mostra como a palavra “fascismo” perdeu o sentido no debate público. Padecemos da mesma crise semântica. Se eu imaginar que qualquer um que não estiver comigo for um fascista, lamento constatar, mas o fascista sou eu e não todos os outros.
Aqui no Brasil, a expressão “fascista” tem sido usada para definir todo aquele que não votar no único candidato da esquerda capaz de salvar o país da ameaça à democracia. Será fascista quem, inclusive, votar nulo. Não interessa. Não votar é ser cúmplice de fascista, logo é fascista também. No ensaio de Orwell, que eu acho um tanto otimista, ele sugere que “tudo que se pode fazer no momento é usar a palavra [fascismo] com certa medida de circunspecção e não, como em geral se faz, degradá-la ao nível de um palavrão”. Hoje, Orwell seria xingado de fascista por propor esse cuidado na hora de sair por aí xingando os outros de fascistas.