Para nos ajudar a entender a tragédia em Suzano, convidei a professora Paula Rosiska, principalmente porque eu queria saber de alguém que, assim como eu, trabalha com ensino se é realmente possível a educação depois de Suzano? Paula Rosiska é professora da rede estadual e municipal de ensino em São Paulo, além de ter sido coordenadora pedagógica por 2 anos.
Você poderia falar um pouco da sua formação, dos seus interesses com educação e sua experiência como professora?
Possuo bacharelado em Português e Alemão pela Universidade de São Paulo, onde também cursei a licenciatura em Língua Portuguesa. Posteriormente realizei um MBA em Administração Escolar, mas o que define a professora que sou é a USP de 20 anos atrás.
No meu segundo semestre da graduação, uma das professoras da Faculdade de Letras disse que nossos estudos na USP eram financiados por todos, inclusive os mais pobres, que dificilmente teriam a chance de cursar uma universidade pública. Na verdade, naquela época, dificilmente um aluno de escola pública conseguiria cursar qualquer faculdade. Os vestibulares eram muito mais difíceis, o Enem não era um processo seletivo, não havia cotas para a rede pública e as faculdades particulares eram caríssimas. Isso foi em 1999, o mesmo ano em que o governo FHC criou o Fies.
As palavras dessa professora me marcaram muito. Eu estudei em escola particular de periferia, mas se não tivesse entrado numa universidade pública não teria como cursar o ensino superior. Comecei a procurar uma maneira de retribuir o que a sociedade fazia por mim. Descobri um grupo ligado à Igreja Católica que havia montado um cursinho comunitário. Chamava-se Projeto Raiz e atendia jovens carentes do extremo-sul da cidade de São Paulo, onde eu ainda moro. Eles precisavam de professores voluntários para lecionar aos sábados pela manhã. Faltava uma professora de redação e eu passei a integrar a equipe. Os criadores do projeto estiveram em dezenas de escolas públicas divulgar o cursinho. A seleção dos alunos era feita por entrevista ou apresentação de atestado de pobreza. Ajudei realizar as entrevistas no início do ano 2000. Foi nesse momento que conheci a realidade da clientela a quem leciono até hoje.
Em fevereiro de 2000, entrei em uma sala de aula pela primeira vez como professora. Foi no exato mês em que comecei a Licenciatura. Eu não tinha a mínima noção de pedagogia, portanto, mas era movida pela vontade de ensinar o máximo que pudesse para fazer a diferença na vida dos meus alunos. Dada essa primeira aula, lembro de ter pensado: “acabo de descobrir o que quero fazer para sempre, com a vantagem que um dia ganharei para isso”. Friso aqui que os tempos eram outros e que se tratava de um cursinho. A situação que passei a vivenciar como professora efetiva da rede foi bem diferente. Mas não muda o sentimento que tenho quando sinto que a aula fez diferença na vida do aluno. Ou, pelo menos, que o fez descobrir algo.
Saí do projeto em 2003. Lula fora eleito em 2002 e em seu primeiro discurso já falou em cotas raciais. Atendendo a alunos em situação de extrema pobreza, que moravam em Parelheiros e demais bairros do extremo-sul, notei que minhas turmas do cursinho possuíam muitos alunos brancos. Há muitos descendentes de alemães e poloneses nesta região. Eu entendia que esses alunos seriam prejudicados duplamente pelo sistema: um vestibular no qual oriundos de escolas como Porto Seguro e Arquidiocesano tinham muito mais chances de passar, enquanto alguns dos meus alunos pegavam balsa (sic) para chegar à escola quando havia aula, e a partir de então, vagas para negros, que eles, brancos pobres, não poderiam obviamente preencher.
Felizmente eu era uma completa ignorante política. Imagine uma pessoa proferindo o discurso acima, de que as cotas para negros eram injustiça contra os brancos pobres, numa reunião da Educafro. Eu era essa pessoa. O projeto era ligado à Educafro, que, por sua vez, é ligada ao PT. Eu não entendia esse jogo, até porque acreditava que o PT queria ajudar os pobres, mas me sentia traindo os meus alunos. Concordar com essa política era jogá-los ainda mais para trás na linha de largada da corrida para o ensino superior.
Na licenciatura, tínhamos o estágio obrigatório, que cumpri em 2003 com a minha professora de português do ensino médio. Ela lecionava na escola estadual, situada a 200 metros da minha casa, para as oitavas séries e os segundos anos do ensino médio. Fiquei encantada com o que vi. Os alunos a respeitavam tanto! Muito mais do que a minha turma da escola particular (eu morria de vergonha da falta de respeito dos meus colegas). Ela levava o próprio material, bancava com recurso próprio uma série de coisas para que suas aulas funcionassem. Mesmo vendo isso, achei que os alunos da rede pública eram mais dóceis e respeitosos do que os das escolas particulares e decidi que, se pudesse, seria professora da rede. No final desse mesmo ano, houve concurso para o estado de São Paulo e passei.
No início de 2004, a Fundação Bradesco precisou de uma professora de português para substituir a que entraria em licença-maternidade. Eles tinham meu contato, porque no ano anterior eu havia participado da correção de redações da instituição, como freelancer. Então trabalhei lá durante um semestre, enquanto aguardava ser chamada para o concurso. A Fundação é uma excelente escola, com excelentes profissionais e um nível de exigência altíssimo. E tem também tudo o que o dinheiro de um banco pode proporcionar: material à vontade, recursos audiovisuais, anfiteatro, excursões diversas e qualquer coisa que seja adequada para que os alunos tenham uma excelente formação. Além disso, pagavam um ótimo salário. Mas eu não me sentia realizada lá. Tão logo a Secretaria da Educação do Estado me chamou, assumi minha vaga, para ganhar ¼ do que recebia, mas estar onde eu acreditava ser o meu lugar.
Na USP tive aula com um grande professor, Julio Groppa, o que mais me marcou em toda a minha vida. Ele se definia como tradicionalista-delirante, que é exatamente como me defino. Sempre vi o ensino tradicional com bons olhos e ele parecia ser o único que também tinha essa visão entre os docentes ali. “A escola é o lugar do passado por excelência”, dizia ele. Os alunos vão à escola para aprender sobre o passado. Os seres humanos do passado que nos deixaram a lâmpada, o automóvel, o chuveiro elétrico, as vacinas, os poemas e as esculturas. Toda essa herança de infinita riqueza deve ser entregue aos mais jovens e quem faz isso é o professor. Afinal, dizia ele, “Quem te ensinou a tirar dinheiro no caixa eletrônico não foi um professor, né? Porque para aprender o que é necessário para o cotidiano, mesmo que a tecnologia mude, nós damos um jeito. Mas quem te ensinou sobre Da Vinci ou Marie Curie?”.
Esses princípios que me norteiam nunca mudaram. Preparo minhas aulas cheias do que o meu querido Julio chamava de fé pedagógica. Eu creio que minha aula pode fazer diferença para o bem. Eu tenho fé que ao escandir e interpretar um poema de Cruz e Sousa, posso fazer com que o aluno veja o que é poesia de verdade. Não que ele largará o funk para se dedicar à leitura dos poemas simbolistas, mas saberá que existiu um cara que sabia escrever poemas como ninguém. E talvez sinta até algum constrangimento em chamar certas nulidades contemporâneas de “poeta”.
Trabalho desde 2004 na rede estadual, tendo saído da sala de aula durante dois anos para assumir a função de coordenadora pedagógica. Na rede municipal, estou desde 2010 na mesma escola, onde já lecionei para crianças de 6 anos e idosos de 70. Mas o meu foco mesmo são os “quase-adultos” do ensino médio. É com eles que ainda me realizo como professora.
Como você compreende o que aconteceu em Suzano — se é que é possível compreender —; era uma tragédia anunciada?
Era uma tragédia anunciada há pouquíssimo tempo e para a qual não se deu atenção. A professora Lola Aronovitch foi vítima de ataques desses grupos durante quase uma década. Os ataques incluíam ameaças de morte a ela, seu marido e sua mãe, além de um tanto de injúrias. Depois desse tempo todo, o criador do fórum misógino, racista, homofóbico, antissemita e pedófilo foi condenado a 41 anos de prisão. Em seu depoimento, Lola menciona que o atirador do Realengo integrava esse mesmo grupo. Na época, a mídia não deu muita atenção para o fato de o atirador matar dez meninas e ferir dois meninos. A tônica do grupo é a misoginia. Eles chamam as próprias mães de vadias e de depósito de esperma. Para eles, nenhuma mulher presta e, por isso, todas devem ser estupradas e mortas. O líder do grupo prometeu que cometeria um tiroteio na UnB, onde estudara japonês, para limpar as vadias do ambiente.
Também eu fui vítima de ataques desses trolls e consegui, via MP, chegar a alguns autores. No entanto, quando levei o caso à polícia (no meu caso não houve ameaças), disseram que era apenas coisa de adolescentes desocupados… Entendo que seja um fenômeno muito recente, difícil de categorizar e compreender, então é normal que se busquem explicações mais simples como “a culpa é dos videogames”, “eles sofreram bullying”, “é coisa de adolescente desocupado” quando algo assim acontece.
Faltam algumas peças para categorizar esses atos como terrorismo e os participantes dos fóruns como psicopatas. Terrorismo é o uso da violência para fins políticos ou para imposição de uma vontade. É um tipo de chantagem. A questão é: qual é a vontade dessas pessoas? O que elas querem em troca? Aparentemente, só querem fazer de sua própria morte um espetáculo, e isso estão conseguindo. A mídia dá imenso destaque para os atiradores suicidas, mas pouco para as vítimas e os heroicos policiais que impediram um mal maior.
Por outro lado, não há na literatura médica ou policial tipos como esses suicidas frequentadores de fóruns misóginos. Claro, há os serial killers que sofreram bullying e se vingam dos que os humilharam na escola, enquanto nossos jovens atiradores matam quem passar pela frente na hora. Há os depressivos que não veem mais sentido na vida e decidem se matar mas procuram dar o mínimo de trabalho para a família. Há os psicopatas “clássicos”: inteligentes, sedutores, carismáticos, que sentem prazer ao ganhar a confiança das vítimas que irão matar. Esses não cometem suicídio. Essas três peças não se encaixam, especialmente quando tentamos ligá-las às organizações terroristas que são esses fóruns.
O que temos até aqui é o seguinte: jovens que levam uma vida vazia de qualquer sonho, sentimento ou princípio. São solitários, sem amigos, não se sentem amados nem pelos pais e não amam ninguém. Eles não foram enganados por ninguém quando decidiram seguir o fundador do tal fórum. Quando se decide seguir alguém que comemora a morte da “vadia” Eloá pelo namorado Lindemberg, e lamenta que o “herói” não matou a amiga também, é porque há uma interlocução aí. Eles sabem que seu destino é ficar, dia após dia, entrando na internet para escrever e ler mensagens de ódio. Um dia, informam que cometerão suicídio e os demais membros do fórum pedem que levem umas vadias junto e os orientam sobre como proceder.
É importante ter em mente que esses atentados são o meio e o fim. Sua finalidade é acabar com própria vida sem graça e o meio escolhido é o atentado. Escolhem esse meio para que ao menos na morte sejam reconhecidos e aplaudidos por outros infelizes. Eles estão conseguindo reconhecimento e fama, portanto outros farão o mesmo. Não têm nada a perder, quanto maior a destruição causada, melhor.
Haverá outros atentados, cada vez piores, enquanto não se tratar essa questão com a seriedade necessária. Repito: não são lobos solitários, eles recebem instruções. Tudo o que querem é a fama, então seria prudente nem sequer mencionar seus nomes nas reportagens e quadricular suas fotos para impedir sua identificação, como fazem com menores infratores.
A escola (e aqui penso no sentido institucional bem abrangente) falhou com esses garotos?
A escola há tempos não é mais uma instituição voltada exclusivamente para o ensino. É um local de acolhimento de crianças e jovens. É onde os adultos lhes dão atenção. Uma professora de fundamental I, o antigo primário, passa mais horas por dia com uma criança do que seus pais. Normalmente é ela quem detecta possíveis problemas psicológicos e de fonoaudiologia e solicita encaminhamentos médicos. Hoje em dia são os professores também do fundamental II que ensinam aos adolescentes os cuidados com a higiene pessoal. E é por isso, creio, que muitas vezes os jovens se sentem mais à vontade para contar seus segredos para os professores. São os professores que detectam quando as crianças são abusadas sexualmente e quando são espancadas.
Nunca vi um professor deixar de auxiliar um aluno, quando há esse pedido. Pode ser o professor mais rígido da escola, mas sempre tratará o jovem com atenção e carinho. No ano passado, duas meninas depressivas vieram me contar que se cortavam. Nesses casos, pergunto se elas desejam que eu converse com seus pais e que realize um encaminhamento ao psicólogo. Há uma diferença entre ajuda e intromissão e procuramos tratar esses casos com bastante delicadeza.
A primeira vez que um jovem vai ao teatro na vida (talvez a única) é em excursão escolar. As únicas chances de conhecerem a cidade e pegarem a estrada para outras é quando os professores organizam passeios. Organizar e realizar excursões é um inferno trabalhoso. Mexer com dinheiro, listas, comparar preços de ônibus e responsabilizar-se por adolescentes fora dos muros escolares é uma tarefa ingrata. Mas no ano passado, no projeto Santos (Museus, Bolsa do Café, vista da praia), quando um aluno de 18 anos desobedeceu as ordens para permanecer no ônibus, correndo molhar os pés no mar, ninguém foi capaz repreendê-lo: ele voltou com um imenso sorriso e disse que era a primeira vez que via o mar.
Eu não gosto do que a escola se tornou. Ela está sobrecarregada de problemas sociais para dar conta. Quando se ensina algo é lucro. Eu amava ser professora de português e detesto ser educadora. Mas, como diz o Ben Shapiro, fatos não ligam para sentimentos. A realidade da nossa clientela é essa e, diante disso, faremos o melhor possível. No mundo ideal, a educação vem de casa. No real, os professores a providenciam como podem.
Por isso, não me parece justo pensar que a escola falhou com esses rapazes. Eles nunca procuraram ajuda, nunca se abriram com ninguém, para que uma pessoa mais atenta percebesse que havia algo errado. Nunca se queixaram de nada para os professores ou para a coordenadora que assassinaram no atentado e os recebeu com um sorriso no momento em que entraram na escola. Numa das reportagens, mostraram o professor que passava de sala em sala vendendo rifa para ajudar os formandos do 3.º ano, como acontece em qualquer escola. Trata-se atualmente de uma instituição que acolhe e ajuda os jovens, mas não possui poderes de clarividência. Como seria possível adivinhar que entre centenas de alunos, dois deles possuíam apenas ódio dentro de si?
Diante desses atentados, uma das primeiras reações da imprensa e de alguns setores políticos é apontar para o problema do armamento civil, o que você pensa a respeito dessa “leitura”?
Alguns setores políticos favoráveis ao armamento creem que se os professores andassem armados isso não aconteceria. Há bons argumentos nessa fala. O primeiro é que esses ataques acontecem apenas em locais onde todos estão desarmados (escolas e igrejas). Os atiradores são covardes e contam com a incapacidade de defesa das vítimas. Basta ver que tanto em Realengo como em Suzano os atos terminaram com a chegada de policiais armados. Em Israel, onde ataques terroristas são mais frequentes, as professoras entram armadas em sala. Nunca ouvimos falar de atentados em escolas israelenses.
Há aí, entretanto, uma visão falha sobre a nossa realidade. Em Israel, todo mundo recebe algum tipo de treinamento militar, aqui não. Para o porte de armas, sobretudo em ambiente com muitas crianças, seria necessário um treinamento excepcional, coisa que não é oferecida sequer às polícias em muitos casos. E quem bancaria tal treinamento para centenas de milhares de professores? Nem ao menos as folhas de sulfite para a impressão de atividades são bancadas pela Secretaria da Educação. Os professores pagam do próprio bolso, inclusive a tinta da impressora (em 2016, o governo mandou recolher as impressoras das escolas e nunca houve reposição). O que poderia ser feito de imediato seria a contratação de seguranças armados, muito bem treinados.
Por outro lado, atribuir o atentado ao decreto presidencial que facilita em alguns poucos pontos a posse de armas de fogo é uma leitura completamente equivocada. As regras para a obtenção de armas de fogo registradas ainda são bastante rígidas. O adolescente que pretende cometer suicídio não aguardará até completar a idade mínima exigida (21 anos), frequentar o curso de tiro, obter certificado do instrutor, justificar a efetiva necessidade na PF, juntar muito dinheiro para comprar a arma e obter a guia de tráfego do Exército para poder transportá-la para casa. Mais fácil comprar arma ilegal, como ocorreu de fato. Não faz sentido pensar que uma pessoa incapaz de planejar um final de semana diferente de passar horas jogando no computador tenha a capacidade de elaborar e cumprir um plano tão trabalhoso, apenas para matar outros um pouco antes de cometer suicídio.
Outra “leitura” que muita gente faz desses atentados é tentar associá-lo ao “bullying“. É uma preocupação correta?
No Brasil, há uma preocupação exagerada com o tema, porque o que ocorre aqui é diferente do que acontece nos Estados Unidos, por exemplo. Lá, a prática chega a ser criminosa, havendo casos em que a vítima é amarrada em árvore ou poste e amordaçada para morrer congelada em dias frios. Há também vídeos e fotos de alunos nus, feitos nos vestiários da escola, espalhados nas redes sociais. Aqui, o bullying está mais para assédio: apelidos, piadas sobre cabelo, nariz, gordura e acne, que acabam por arruinar a autoestima das vítimas, o que geralmente as leva à depressão.
Jordan Peterson, professor de psicologia da Universidade de Toronto, afirma em seu livro 12 Regras para a Vida que muitas crianças que sofreram bullying na escola apresentam comportamento inseguro e ansioso quando adultas. Muitas vezes, elas nem se lembram de que sofreram bullying ou nem pensam mais no assunto, mas algo fica retido no subconsciente. Sob esse aspecto, vejo como uma preocupação correta, pois se trata de algo que deixa sequelas. Porém a abordagem do assunto nas escolas costuma ser inadequada e contraproducente. Geralmente, quando oferecem palestras e depoimentos de vítimas para sensibilizar os alunos, conseguem efeito inverso, com aumento sensível dos casos de agressões.
No livro, Peterson diz que foi identificado um padrão nas vítimas de bullying: são as crianças que choram com mais facilidade e demonstram exageradamente seu sofrimento. O agressor possui traços sádicos, então é-lhe mais prazeroso atacar essas vítimas. E é por isso que após essas palestras desastrosas, o bullying aumenta: os agressores se regozijam ao conhecer o mal que são capazes de causar e aumentam a dose. Procuro orientar meus alunos que se queixam de bullying a mudarem de postura, justamente explicando-lhes a natureza do inimigo. Que denunciem as agressões, mas evitem expor seu sofrimento para não alimentar o prazer sádico de quem o provocou.
Uma ingenuidade imperdoável nos educadores é crer na conscientização dos agressores. Eles sabem exatamente o que estão fazendo e a dor que estão provocando. Já vi, perplexa e indignada, o aluno que mais agredia os colegas participando de palestras anti-bullying, com um discurso decorado e sendo aplaudido por alunos e gestores escolares que não o conheciam. Meses depois, voltou à “ativa”, agredindo até professores…
Alegar que o bullying motivou os atentados é justificar o injustificável, é dar um motivo razoável ao covarde que nunca revidou um xingamento, mas anos depois adquire uma arma e retorna à escola para matar gente que nunca lhe fez mal. É como afirmar que homem comete estupro porque mulher usa roupa curta.
Gostaria de fazer uma provocação, lembrando uma frase de Adorno sobre Auschwitz (de que não há poesia depois do holocausto), enfim, depois do que aconteceu em Suzano, como é possível falar em educação?
No dia da tragédia, me perguntei se ainda haveria razão para existirem escolas e se uma das duas em que leciono seria o próximo cenário de tragédia. Talvez fosse melhor se ficássemos todos em casa e só houvesse educação à distância.
Fui para as aulas da tarde e os alunos do 6.º ano me perguntaram se estávamos seguros lá, se havia chances de acontecer a mesma coisa conosco. Não quis mentir para eles. Disse que havia essa possibilidade sim, mas que não é porque eu tinha a chance de ganhar na loteria, se jogasse naquele dia, que sairia gastando todo o meu dinheiro contando com o prêmio.
Temos de continuar vivendo. O que os terroristas querem é justamente que paremos. E que fiquemos o resto dos nossos dias trancados no quarto, vivendo a existência triste que eles tinham. Então perguntei: — Por qual motivo você não gostaria de morrer hoje? Só não vale responder que é porque tem medo da morte. Não precisa responder em voz alta, responda para você mesmo.
Ao contrário dos adultos, as crianças não têm muito pudor em revelar seus anseios. Fizeram questão de responder. A maioria disse que a família sofreria muito. Alguns, que estavam aguardando uma festa de aniversário, um passeio ou uma viagem que os pais haviam prometido.
Essas respostas me trouxeram uma alegria por ver que eles se sentem amados e têm planos para o futuro – que, no caso, é o mês que vem –, como qualquer jovem vivo (os atiradores já estavam mortos antes, eram como zumbis: sem vida, atrás apenas de sangue e com potencial destrutivo).
Como dito anteriormente, a escola hoje está longe de ser o local ideal para o ensino sistematizado de conteúdos. Mas é o lugar onde a vida acontece. É a resposta à questão feita por Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, em seu Poema em linha reta: “onde é que há gente no mundo?” Na escola há indivíduos com histórias trágicas, outros que não conhecem o sofrimento, há os carentes, os violentos, os amáveis, gente de todo tipo.
Nós, brasileiros, recordistas mundiais em assassinatos com armas de fogo, deveríamos repetir “a Vida não oferece garantia” como um mantra ao acordar. E agradecer a Deus por mais um dia.
Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.
Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?
Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.
Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.
(Gregório de Matos)