Das festas tradicionais brasileiras, minhas melhores lembranças de infância vêm das festas de São João. De tradição católica do interior de São Paulo, acendemos a fogueira com toda a devoção caipira: Viva São João! E a comilança? Em casa, ao som de Luiz Gonzaga e bandeirinhas coloridas, a tradição é reunir a família para preparar e depois comer a canjica, o bolo de milho, o pé de moleque, a pamonha, a paçoca, a pipoca, o churrasquinho e encher a cara de quentão e vinho quente. Como meu sogro descende de libaneses, introduzimos no cardápio o churrasquinho de kafta. Obviamente, há limites que precisam ser preservados. Por exemplo, em festa de São João se toca música de festa de São João:
Mandacaru quando fulora na seca
É o sinal que a chuva chega no sertão
Toda menina que enjoa da boneca
É sinal que o amor já chegou no coração
Meia comprida, não quer mais sapato baixo
Vestido bem cintado, não quer mais vestir timão
Notem a beleza desta frase: Mandacaru quando fulora na seca é o sinal que a chuva chega no sertão. O mandacaru é um cacto nativo do Brasil que floresce na seca. Ao florescer, o mandacaru traz a esperança de que haverá chuva num sertão castigado pela seca. A flor do mandacaru anuncia essa mudança de tempo assim como a menina indica que mudou ao enjoar da boneca.
Há limites que precisam ser preservados. Por exemplo, em festa de São João se toca música de festa de São João, não axé
O Xote das Meninas, forró clássico de Luiz Gonzaga, aborda características comuns de uma adolescente apaixonada. Agora, o valor é dado à aparência: Meia comprida, não quer mais sapato baixo. Vestido bem cintado. Distraída, ela sonha acordada. Preocupado, o pai a leva ao médico. Porém, o problema não é doença, é o amor. Ela só pensa em namorar...
Mas o dotô nem examina
Chamando o pai do lado, lhe diz logo em surdina
Que o mal é da idade e que pra tal menina
Não tem um só remédio em toda medicina
Enfim, tudo isso para dizer que concordo com Astrid Fontenelle: em festa de São João se toca forró, não axé. No fim de semana, fui surpreendido com uma discussão que rolou entre Gabriela Prioli e Astrid, no Saia Justa, do GNT. Basicamente, a discussão girou em torno de um problema antropológico interessante: as festas tradicionais brasileiras devem preservar suas tradições? Disse Astrid: “Vou pra São João pra dançar o forró com meu amendoim cozido. Cheguei lá, era uma festa de axé. Não, não dá”. Com ares de especialista, Prioli atravessou Astrid alegando o seguinte: “Não dá pra você. Mas parte de um juízo subjetivo seu. O que você estava esperando era chegar lá e encontrar outra coisa”. Sim, esperando encontrar festa de São João. Ora, continua Prioli:
“O que talvez as pessoas estivessem esperando é justamente o que foi oferecido. Eu acho que é muito legal a frase: ‘o povo sabe o que quer, mas às vezes o povo quer o que não sabe’. Mas a gente precisa tomar cuidado com quem é que vai dizer o que o povo quer e não sabe. Porque senão a gente se coloca no lugar de dirigir o que as pessoas vão consumir a partir do nosso sentimento subjetivo. Acho que o que vale a pena pensar primeiro é: O que é o São João tradicional? Porque o São João do Brasil também bebe em fontes de um São João que vem da Europa com os colonizadores da tradição católica, que por sua vez bebe da fonte da tradição pagã que celebrava a colheita. Então, qual é o marco temporal que a gente vai estabelecer pra dizer o que é?
O erro do argumento de Prioli é muito simples: achar que uma tradição cultural é determinada por gostos pessoais. Na tentativa de intelectualizar uma conversa simples acerca da importância de se preservar uma tradição, ela psicologizou a cultura. Como se a cultura fosse apenas a expressão de gosto individual das pessoas.
As tradições culturais são moldadas pelas experiências históricas e ambientais de um grupo, e são adaptadas e modificadas ao longo do tempo. De fato, a tradição cultural é dinâmica e está em constante transformação, à medida que os indivíduos e grupos interagem com outros contextos culturais. No entanto, não se trata de um processo de pura satisfação psicológica. Há um nível de realidade objetiva na manifestação de uma tradição cultural e Astrid, segundo seu bom senso, estava consternada com a perda dessa realidade. Não à toa sua resposta para Prioli foi:
“Não tenho problema para falar ‘pra mim é’, porque eu estou dando a minha opinião, e minha opinião não é a opinião de todo mundo, mas é opinião de muita gente que quer manter a tradição e não quer perder essa parte da história, sobretudo nordestina, tão forte, tão bonita e que movimenta realmente muita coisa. A prefeitura pode contratar quem ela quiser, mas ela não pode esquecer da família, do coreto, da fogueirinha, do licor de Jenipapo sem Rótulo, mas que é genial... isso é tradição brasileira. Essa é a minha defesa.”
Exato: o “pra mim é” de Astrid não se refere a uma experiência subjetiva de gosto, mas a uma percepção da própria cultura como realidade, e uma realidade que precisa ser constantemente construída e preservada.