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E não tenho qualquer tipo de ressentimentos com a riqueza e o sucesso alheio; quero mais é que os ricos, com o fruto de suas ideias e trabalho, conquistem o melhor dos mundos possíveis e desfrutem de todo o conforto que só o dinheiro pode comprar. Mas não sou hedonista. Tampouco acredito que o dinheiro possa trazer alguma coisa para além de uma efêmera e boa vida de conforto material: bons vinhos, um carro de luxo na garagem, um gato persa, viagens para a Europa todo ano com a família, e, claro, uma suntuosa mansão de 6 milhões.
Toda vez que reflito sobre os prazeres e os benefícios da riqueza, lembro-me do belíssimo filme Perfume de Mulher (1992), com Al Pacino no papel do tenente-coronel Frank Slade, aposentado por invalidez devido a um acidente com uma granada que o deixara completamente cego. Já comentei a respeito desta obra de arte aqui.
Um dos problemas da riqueza é, para falar com Aristóteles, supor que o dinheiro, assim como os prazeres do luxo, traz felicidade
A sinopse do filme é relativamente simples: antes de se matar, Frank Slade quer desfrutar de tudo o que a vida material pode oferecer de melhor para o ser humano exigente e de bom gosto: ir para Nova York, comer no melhor restaurante, usar um terno feito sob medida, ter relações sexuais com uma bela e insaciável prostituta, ficar hospedado no Waldorf-Astoria e, depois de satisfazer todos esses caprichos da carne, dar um tiro na cabeça. Claro, deitado na macia cama, com lençóis de seda e travesseiros de pena de ganso, deste hotel de luxo. Fim.
Qual seria a verdadeira razão para viver, a não ser satisfazer os prazeres mundanos? Quem sou eu para propor uma resposta espiritualmente sofisticada a essa pergunta. O suicídio pode ser uma saída até que fácil diante da vida que optou por ser vivida na miserável pureza da satisfação material. A consciência moral morreu, diz Slade enquanto dança tango e pilota uma Ferrari Mondial T conversível pelos becos sujos de Nova York.
As cenas são inesquecíveis; Al Pacino, de fato, mereceu o Oscar. No entanto, no fim do filme, Frank Slade descobre que a verdadeira felicidade está em lugar mais digno. Não à toa, depois da reviravolta narrativa magnificamente elaborada pelo roteiro, o cego advogará em nome dos princípios inabaláveis da virtude moral e do sagrado senso de dever.
Um dos problemas da riqueza é, para falar com Aristóteles, supor que o dinheiro, assim como os prazeres do luxo, traz felicidade. Ostentar riqueza é, antes, sinal de uma alma tacanha e inválida. Na verdade, a ostentação da riqueza pode revelar a vida vazia e desprezível que algumas pessoas levam para si mesmas. Moralmente falando, o apreço ao vil metal pode revelar os homens ocos cujo elmo está cheio de nada – para lembrar dos versos de T.S. Eliot.
Desprezo e revolta são os únicos sentimentos que eu tive quando soube da notícia de que o senador Flávio Bolsonaro comprou, em Brasília, uma mansãozinha pela bagatela de quase 6 milhões de dracmas.
Porque não bastasse ser Flávio Bolsonaro – o filho de Seu Jair, presidente da República, o mais inepto e anempático governante no trato da pandemia –, com sua gloriosa e incorruptível capivara. Não se trata exatamente deste ou de qualquer outro filho do presidente, mas de um senador da República a comprar uma casa valendo esta fortuna enquanto o “cidadão de bem”, o corajoso trabalhador brasileiro, que não tem um puto de esperança pra comprar um prato de arroz pros filhos, vive as dores do período mais dramático dessa peste que já contabilizou mais de 250 mil defuntos. Seu Jair dá de ombros; Flávio, seu filho, compra uma mansão.
A questão que eu levanto aqui não é saber se Flávio comprou a linda mansão com o suor de seu duro trabalho honesto ou não. No contexto destas reflexões sobre a miséria moral da riqueza, pouco importa de onde ele tirou o dinheiro. Minha pergunta, antes, tem a ver com a experiência de assistir ao desprezo, ao vilipêndio, ao desdém, ao ultraje, à humilhação, à afronta, ao insulto, à antipatia, ao menosprezo desses políticos pelas pessoas que eles dizem representar. Flávio, assim, encarna o pior da politicagem brasileira. É a politicagem do salafrário, do malandro que quer se dar bem enquanto a população definha na agonia de não ter, literalmente, onde cair morta. Só podia ser mesmo o filho do Seu Jair.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos