Quando Lula utilizou a imagem do genocídio nazista para criticar as ações do Estado de Israel contra o Hamas, na Palestina, ele não cometeu uma gafe, um tropeço na comunicação, nem improvisou. Lula sabia muito bem quem o defenderia e quem o criticaria. Ele acredita piamente no discurso e sabe, além disso, mobilizar as massas dos seus apoiadores domésticos. Lula fala para seu público com o objetivo de gerar engajamento interno muito mais do que externo. Pouco importa o Brasil, o anão político, se tornar pária nas relações internacionais. Lula mobiliza as paixões dos apoiadores, da imprensa bajuladora e dos intelectuais ideologicamente comprometidos.
Não é à toa que parte das redes sociais, um termômetro para medir a reação da opinião pública, saiu em defesa do presidente. A hashtag “Lula tem razão” ainda circula entre aqueles que nem escondem mais o que, de fato, pensam sobre Israel e sobre os judeus.
O que Lula quis dizer foi o seguinte: “Israel age como os nazistas”. Ou seja, comparou a política de Israel contra o Hamas com o que poderia ser considerado o pior insulto para um judeu. Sua intenção era tocar na ferida mais dolorosa desse povo. Fez de caso pensado. Não para despertar a consciência de Israel, mas para infligir-lhe dor e, sobretudo, para escancarar o que a esquerda petista pensa a respeito dos judeus. Não mais malabarismos retóricos, a habilidosa distinção antissionista e antissemitismo perdeu a vergonha.
Lula comparou a política de Israel contra o Hamas com o que poderia ser considerado o pior insulto para um judeu. Sua intenção era tocar na ferida mais dolorosa desse povo. Fez de caso pensado
Vejam este caso. Ronilso Pacheco, teólogo e pastor progressista, escreveu um sofisticado comentário a favor de Lula em sua coluna no UOL. Um exemplo clássico do intelectual submisso e apaixonado pela liderança política carismática. Segundo ele, “Lula nos deu uma chance de enfrentar um dilema sobre o Holocausto”. Mas como Pacheco enfrenta o Holocausto? Minimizando a sua excepcionalidade histórica, porque, afinal, outros povos também sofreram massacres e violência.
Seu argumento pode ser resumido em duas camadas, que analisarei separadamente. A primeira é quantitativa e diz respeito a uma comparação puramente numérica das tragédias humanas:
P1. O Holocausto dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial é frequentemente considerado um evento único na história. Ele marcou um “basta” global em violações aos direitos humanos.
P2. Mas outros eventos históricos, como a colonização das Américas, o tráfico transatlântico de escravos, o genocídio no Congo sob Leopoldo II, e o extermínio dos povos Herero e Nama pela Alemanha, também resultaram em milhões de mortes e sofrimentos extremos.
Portanto, afirmar que o Holocausto é único desconsidera e minimiza outros eventos históricos significativos que igualmente envolveram graves violações aos direitos humanos e genocídios.
Em resumo, ele pergunta “o que tornou o genocídio dos judeus pela Alemanha nazista uma ‘barbárie real’, a verdadeira ‘banalização do mal’, enquanto todos os episódios anteriores, mesmo com características semelhantes, eram vistos e tratados como apenas ‘História’”. Ora, o pressuposto dele é que todas as outras formas de violência e massacres humanos são minimizados, exceto o Holocausto. Porém, isso não é verdadeiro. Ninguém minimiza a excepcionalidade de outros casos de violências. Ele presume isso e o faz para poder minimizar a excepcionalidade histórica do Holocausto e, claro, defender a fala de Lula.
O genocídio nazista tem sua excepcionalidade e é único na história. Ao adotar esse método quantitativo para compreender a natureza das ideias e suas consequências, encontram-se bizarrices desse tipo. Trata-se do uso indevido dos números para justificar uma narrativa subjacente, aceita como verdade no âmbito das ideias, e não como fato. Não existe outro Holocausto na história; a Shoah foi única. Isso, contudo, não implica que tenha sido o único ato genocida e nem o único ato de violência. O método de comparação dos genocídios através da história não deve se limitar a uma tabela de números de mortes – tal prática é repreensível por ser não só errada, mas grotesca. A comparação exige uma abordagem transdisciplinar.
Considere os genocídios cambojano, armênio e de Ruanda. Embora, numericamente, esses genocídios possam não apresentar números tão expressivos quanto os que figurariam em uma tabela hipotética, não deixam de ser atos de genocídio marcados por uma violência excepcional. Cada um tem a sua excepcionalidade. E, de fato, são genocídios. Porém, nem tudo é genocídio.
Toda violência, para ser compreendida em profundidade, precisa ser analisada em sua excepcionalidade. Toda comparação com objetivo de autocompreensão histórica deve ir além da lógica numérica, caso se busque uma compreensão do evento pautada na honestidade e no respeito pelas vítimas, caso estejamos em busca de uma autoconsciência e saber do que somos, enquanto humanos, capazes. A história ensina. Entretanto, parece que esse tipo de compreensão não é o interesse daqueles que desejam atacar os judeus e bajular anões políticos.
No fundo, a pretensão de Ronilso Pacheco é sair em defesa pública de Lula, que pode chamar terroristas do Hamas de “companheiros” e Israel de inimigo
A segunda camada do argumento, agora qualitativa, diz respeito ao significado do uso da comparação do Holocausto que Lula fez.
P1. Utilizar a imagem do Holocausto como referência para comunicar a gravidade de outros eventos históricos não é necessariamente uma ofensa ao povo judeu, mas uma disputa pelo poder simbólico das palavras.
P2. O Holocausto, devido ao seu impacto profundo e à sensibilidade que evoca, serve como um poderoso recurso descritivo para ilustrar a severidade e o absurdo de outras formas de violência e desumanização, como a escravidão.
Portanto, comparar outros eventos históricos ao Holocausto, longe de diminuir a dor e o sofrimento do povo judeu, pode ser uma forma de comunicar a extrema gravidade desses eventos que os próprios judeus estão causando. Seu objetivo é promover uma compreensão mais profunda da desumanização e violência que eles representam.
Mas vamos ver como ele chega a essa conclusão. O pressuposto de Pacheco é o seguinte: ao argumentar sobre o uso comparativo do Holocausto, ele presume a ideia de que a memória histórica e o significado atribuído a eventos catastróficos são não apenas construções sociais, mas instrumentos de poder que podem ser mobilizados para diversos fins, incluindo a sensibilização para outras injustiças históricas. Ora, esse argumento toca em questões de representação, memória coletiva e ética da memória.
A ideia de que algumas narrativas são privilegiadas em detrimento de outras revela uma tensão entre a universalidade do sofrimento humano e a particularidade das experiências históricas. Assim, ao sugerir que o Holocausto serve como um recurso descritivo poderoso, Pacheco implicitamente questiona quais histórias são contadas e quem tem o direito de contá-las. Ou seja, este pressuposto questiona os critérios que usamos para avaliar e comparar sofrimentos históricos, sugerindo que tais avaliações estão imbuídas de poder e política. Um exemplo, segundo ele, é o uso que Israel faz da excepcionalidade do Holocausto.
Além disso, ele também assume acriticamente que Israel pratica genocídio contra palestinos, tão cruel como o que os alemães nazistas praticaram contra eles. O julgamento já está dado, como se ele, Pacheco, fosse a reta razão de um tribunal – melhor: como se Lula fosse a reta razão e Pacheco, seu assessor.
Em resumo, o que Pacheco não percebe é que ele incorre no mesmo problema que visa denunciar. No fundo, sua pretensão é sair em defesa pública de Lula, que pode chamar terroristas do Hamas de “companheiros” e Israel de inimigo. É o uso da expressão “genocídio” para fins de bajulação política.
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