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Há quem enxergue fascismo em um prato de fondue. Há quem encontre heroísmo em um disparo perdido diretamente na cabeça de um turista. Tudo depende da narrativa.
No Brasil das ideias prontas e dos ungidos, a realidade é só um detalhe miserável. Alguém morre em uma tragédia urbana? “Foi a estrutura.” Um turista caminha entre chalés cenográficos? “Classe média fascista.” A culpa precisa de um rosto. Mas que rosto? Qualquer abstração que nos convenha.
“Homem que matou”, dizia a manchete sobre uma turista baleada ao entrar na favela por engano. Não importa o contexto, a identidade social do algoz foi ocultada. E assim a análise escapou para um jogo ideológico. Imaginem se o assassino fosse um “branco, classe média fascista que costumava ir a Camboriú ou Gramado nas férias com a família matou...” Eis a sentença prévia. A tragédia, nesse teatro, é menos sobre o crime e mais sobre as identidades woke.
Sou muito mais weberiano: toda ação social é individual e carrega sentido. No entanto, a leitura desses sentidos pode estar contaminada. A violência é mediada por filtros mentais que dizem menos sobre os fatos e mais sobre nossas crenças. Critica-se a violência, mas desumaniza-se quem escolhe destinos “por engano”. Demonizam-se as estruturas, mas apagam-se os indivíduos.
Hoje, uma ditadura e uma viagem para Gramado ou Camboriú podem dividir a mesma etiqueta: fascismo. E isso não é só ridículo; é perigoso.
George Orwell, em um de seus textos mais lúcidos, alertou sobre o uso indiscriminado do termo “fascismo”. “Hoje, a palavra fascista não significa nada. É usada apenas como insulto”, escreveu ele em 1944. Chamamos de fascista tudo aquilo que não reflete nossas ideias no espelho. Um regime autoritário e uma viagem para Gramado ou Camboriú podem até dividir a mesma etiqueta. E isso não é só ridículo; é perigoso.
Em uma análise mais densa, Karl Marx e Max Weber oferecem chaves para decifrar o que se esconde sob a superfície das narrativas. Marx nos daria uma explicação estrutural e de conflito. Para ele, as classes sociais e os modos de produção condicionam o comportamento e nossas escolhas. “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, o seu ser social que determina sua consciência.”
No entanto, prefiro Weber, que nos oferece um contraponto essencial e necessário: os indivíduos não são produtos das estruturas; são as estruturas que são formadas por agentes com motivações, crenças e sentidos próprios. O tuiteiro ressentido com a riqueza alheia vive do fetiche dessa mercadoria que se tornou o “favelado brasileiro”.
Li no X o seguinte: “Além de Balneário Camboriú, precisamos falar sobre este outro destino turístico da classe média fascista que é Gramado. Uma das piores experiências que já tive. A cidade é feia, mal organizada, os preços são caríssimos, e até os chocolates foram os piores que eu já comi”.
Na narrativa que rotula o turista de Gramado como fascista, há uma visão marxista caricatural: a classe média seria culpada por sustentar as desigualdades do sistema. Fora fazer de uma questão de gosto, algo pessoal, a medida da análise objetiva: tudo o que eu não gosto e acho feio e cafona é fascismo.
Insisto: prefiro Weber, que nos adverte sobre os perigos da simplificação. Para ele, é essencial compreender os sentidos atribuídos às ações, sem reduzi-las a um determinismo econômico. Obviamente, Marx não seria tão simplista. O turista, o criminoso, o vendedor de chocolate, o ambulante, o milionário dirigindo sua Ferrari em Camboriú não são meros fantoches representativos de uma classe; são indivíduos, com escolhas, valores e, sim, contradições. São, todos eles, de fato, construtores da história. Humanos, miseravelmente humanos.
Infelizmente, a polarização atual se alimenta também de um confronto imaginário. O fascismo denunciado por Orwell junta-se à visão marxista simplificada e constrói um novo “inimigo”: o outro, sempre o outro. Gramado vira um símbolo, não um lugar. A classe média vira um conceito, não uma gente. A favela é a culpa coletiva, nunca um endereço.
A simplificação tem um único propósito: expurgar culpados. Demonizar um “culpado” é emocionalmente satisfatório e, claro, desonesto
No entanto, Weber apontava para um problema um tantinho mais instigante do que o “conflito de classes”: o desencantamento do mundo. Vivemos em uma sociedade que substituiu as explicações religiosas por narrativas ideológicas. E a nossa necessidade de encontrar culpados continua intacta. Demonizar o turista que escolhe Gramado é tão cômodo quanto isentar o adolescente que puxa o gatilho. Ambos são caricaturas, tipos ideais criados para simplificar o caos da realidade.
A simplificação tem um único propósito: expurgar culpados. Demonizar um “culpado” é emocionalmente satisfatório e, claro, desonesto.
O perigo dessa simplificação é evidente. Se tudo é fascismo, então nada mais é. Quando o termo perde o significado, ou apenas se reduz ao símbolo de uma questão de gosto, ele se torna inútil na luta contra o autoritarismo real. Se toda classe média é culpada por sua existência, o debate sério e necessário sobre desigualdade se perde em acusações vazias.
O que resta, então? Um país que debate com espantalhos. O problema do Brasil não é Gramado nem Camboriú ou Copacabana. Não é a classe média fascista imaginária nem o adolescente isento de responsabilidade. O problema é essa recusa em olhar para a realidade e viver do proselitismo. No fundo, a tragédia brasileira não é a violência; essa é só a consequência de nossas escolhas. O problema mesmo é o conforto de viver em um mundo de ideias que sempre se ajustam aos nossos preconceitos.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos