| Foto: Wikimedia Commons
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O Pato-Coelho é um desenho que brinca com a percepção. Dependendo de como se olha, pode ser um pato ou um coelho. Essa figura reflete bem o episódio envolvendo Elon Musk, acusado de fazer um gesto nazista em seu discurso na posse de Donald Trump. Não importa o que, de fato, aconteceu. Importa o que se quer enxergar. Na era das narrativas, interpretações mobilizadas pelo desejo de acusar determinam os fatos.

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Durante o evento, Musk fez o gesto. Colocou a mão no coração e esticou o braço em agradecimento à plateia. Voltou a mão no coração e tomado pelo entusiasmo da vitória, declarou: “My heart goes out to you” (“Meu coração está com vocês”).

Dependendo de como se olha, poderia ser um gesto de gratidão ou uma saudação. Para parte da classe jornalística, não há nuances. Tornou-se imediatamente uma saudação nazista. Sim, congelado o frame, de fato, parece. Não importa mais. O gesto foi elevado a símbolo de algo que ele provavelmente nunca foi. Por isso, Musk reagiu. Chamou a narrativa de “truque sujo”. Disse que era repetitiva e batida.

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Pergunto-me: por que Elon Musk, com todo o poder e dinheiro que tem, negaria o que fez? Um nazista não é envergonhado. A história dos movimentos extremistas não deixa dúvidas: quem abraça essa ideologia não recua, não disfarça. Faz da guerra pela pureza racial uma bandeira e da provocação contra judeus, um objetivo. Se Musk tivesse a intenção de enviar uma mensagem nazista, ele não precisaria se esconder. Poderia bancar. Tem apoio do Estado e de Trump. Sua posição de força permitiria assumir o gesto e, ainda assim, manter seu império. Negar o gesto seria inconveniente para quem pretende destruir todos os judeus da face da terra.

Não importa o que, de fato, aconteceu. Importa o que se quer enxergar.

Não por acaso, a Liga Antidifamação (ADL) analisou o caso. Reconhecida mundialmente pelo combate ao antissemitismo, a ADL afirmou que não havia evidências conectando o gesto de Musk a qualquer simbolismo nazista. Mesmo assim, as acusações prosperaram. Não porque fossem verdadeiras. Viram o pato e o pato defenderão até às últimas consequências. A AntisemitismOrg, organização que monitora o antissemitismo global, alertou para os riscos dessas práticas. Comparações levianas desonram a memória das vítimas do Holocausto e transformam discussões sérias em disputas retóricas vazias. A banalização do termo polariza ainda mais o ambiente. Nem pato, nem coelho. Respeito.

Marcelo Lins, da Globo News, reforçou o coro dos patos. Declarou que, independentemente do contexto ou da explicação de Musk, o gesto deveria ser interpretado como parte de um histórico de aproximações com a extrema-direita. Citou partidos como o AfD, na Alemanha, e o Reform UK, na Inglaterra. O argumento de Lins, no entanto, é um círculo vicioso. Quem já vê o pato, encontra justificativas para o que viu. Ele afirma que o gesto de Musk prova a proximidade com esses grupos. E declara: “Por mais que ele diga que não foi nada disso [...] fato é que ele fez o que ele fez”. Parece simples. Não é.

Lins precisa conectar o gesto a um suposto “histórico” de Musk com partidos de extrema-direita e figuras controversas. Essa é uma falácia clássica de culpabilidade por associação: o gesto é usado como evidência para reforçar uma narrativa maior, e essa narrativa, por sua vez, é citada como prova para interpretar o gesto.

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Acusações desse tipo expõem algo maior. Um tribunal informal foi instaurado, onde a sentença já está dada antes mesmo da defesa ser ouvida. Musk não foi apenas acusado. Foi condenado. A acusação não precisava de provas. Bastava ser plausível o suficiente para circular. Nas redes, plausibilidade supera evidência. Nesse ambiente, jornalistas como Lins não analisam. Decidem. Não explicam. Acusam.

Acusar alguém de nazismo exige responsabilidade. Nazismo não é um termo vago ou flexível. É uma ideologia definida: antissemitismo, repressão, genocídio. Reduzir isso a gestos ambíguos é um insulto às vítimas e à história. Também é perigoso. Quando qualquer ato vira símbolo de ódio, banalizamos o próprio ódio. E o debate público, incapaz de distinguir pato de coelho, cede ao grasnar dos patos.