Foto: Daniel Castellano / Arquivo Gazeta do Povo| Foto:

Entrevistei Luciano Trigo, autor do livro Guerra de Narrativas – A crise política e a luta pelo controle do imaginário (Globo Livros, 2018). Luciano Trigo é jornalista e escritor, e escreve para o Blog do Luciano (G1). O livro Guerra de narrativas procura entender as disputas políticas que tomaram conta de nossa história atual a partir de uma ideia de Brasil que entrou em colapso. Como avalia Luciano Trigo, há um sentimento generalizado que nos une: alguma coisa deu errado no país. Mas qual Brasil queremos de volta? O que, afinal, perdemos? Na verdade, perdemos algumas narrativas: “o que desmoronou foi a ficção de um consenso em torno de um modelo de país”. Como fica essa luta pelo controle do imaginário em épocas de eleições?

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Na clássica definição de Clausewitz, “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Na sua opinião, a guerra narrativa seria a “continuação da política por outros meios”?

Vejo a guerra de narrativas como uma degeneração, ou mesmo uma negação da política, porque ela entende a política como uma disputa entre o bem e o mal. Para que seja saudável, o debate político, o confronto de valores, propostas e visões de mundo dos campos em disputa precisa partir da premissa de que a diferença está nos meios, mas que os fins são os mesmos: uma sociedade mais próspera e justa. Pode-se acreditar que a melhor maneira de se atingir esse fim é a maior intervenção do Estado na economia. Pode-se acreditar que o Estado é incompetente para alocar de forma eficaz recursos que são por definição escassos e que a melhor maneira de se alcançar a prosperidade e a justiça social é estimular o empreendedorismo. Pode-se adotar uma posição intermediária, combinando elementos desses dois programas. Ora, ao desqualificar já no ponto de partida toda diferença de pensamento, ao identificar no adversário político um inimigo a odiar e abater, a guerra de narrativas nega a política.

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Logo no início do livro você diz que “não foi o Brasil que entrou em colapso, foi uma narrativa de Brasil, ou a narrativa de um Brasil. Foi a ‘ficção de um Brasil’. Foi também a ‘ficção de um consenso’ em torno do país que desmoronou”. Também diz que essa não é uma questão puramente partidária. Poderia falar a respeito dessa “ficção de um consenso”? Afinal, que ideia de Brasil entrou em colapso?

A narrativa que entrou em colapso foi aquela que sustentou o PT no poder por mais de 13 anos. Segundo essa narrativa, nunca antes na história no Brasil existiu preocupação do governo com os pobres e com a justiça social. Todos os brasileiros que não se alinhassem à defesa incondicional dos governos de Lula e Dilma odiavam pobres, desejavam a volta da escravidão e não queriam que o filho da empregada estudasse na mesma escola que seus filhos. Apesar de caricata, essa narrativa “colou”, sobretudo entre os jovens formados na escola com partido, e durante muito tempo pegou mal criticar os governos do PT, criando-se assim a ilusão de um consenso. Com os protestos de junho de 2013, com as revelações escabrosas da Operação Lava Jato e, por fim, com a rápida deterioração da economia, essa narrativa se desintegrou. Em pouco tempo ficou claro que, embora tenha de fato sido responsável por políticas meritórias de distribuição de renda e redução da miséria, o governo do PT não tinha sido capaz de oferecer serviços públicos decentes nem de gerir a economia de forma eficaz. E, principalmente, ficou claro que existia um projeto criminoso de perpetuação no poder, ancorado num gigantesco esquema de corrupção montado na Petrobras e em outros órgãos e empresas estatais.

Historicamente, dois momentos foram decisivos para a consolidação e radicalização da “guerra de narrativas”: o ano de 2013, com as Jornadas de Junho, e a Operação Lava Jato. O primeiro como movimento ideológico, o segundo revelando um gigantesco esquema de corrupção. Minha pergunta é: a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, dentro desse contexto de guerra de narrativas, significa o quê?

A prisão de Lula e outros políticos, como a prisão de Marcelo Odebrecht e outros megaempresários, significa que o país amadureceu e que as instituições estão mais fortes. O efeito pedagógico dessas prisões – que seriam inimagináveis 10 ou 15 anos atrás – é enorme. Diminui a sensação de impunidade no país. Quando mesmo pessoas ricas e poderosas vão presas, diminui a percepção do cidadão comum de que no Brasil o crime compensa. Mas, na guerra de narrativas, insiste-se na tese de que a prisão de Lula é política, e de que Lula é a alma mais honesta deste país.

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Na abertura do capítulo 3, você escreve: “A guerra de narrativas diz respeito diretamente aos sentidos das palavras, e poucas palavras são mais carregadas de significado no Brasil que ‘direita'”. No Brasil, por um tempo relativamente longo, consolidou-se a disputa entre PT e PSDB como sendo a disputa entre “esquerda” e “direita”. Como você enxerga a ascensão de candidatos como Jair Bolsonaro? Ele representa a consolidação democrática de uma “nova direita” que agora ocupa espaços ou é apenas o velho populismo reativo que, de repente, se deu conta de que a “ficção de um Brasil entrou em colapso”?

Bolsonaro é um autêntico fenômeno popular, e nem a mídia, nem os adversários dos candidatos – muito menos os eleitores de seus adversários, a julgar pelas redes sociais – estão sabendo lidar com ele. A mesma coisa acontecia com Lula. O laço dos eleitores com Bolsonaro é de natureza mais emocional que racional, o que o torna praticamente impermeável a ataques. Aliás, os motivos que usam para atacá-lo – suas declarações controversas sobre mulheres, homossexuais e outras minorias – são percebidos como virtudes pela maioria de seus eleitores. Pelo aspecto messiânico e populista de sua candidatura, bem como pelo seu evidente despreparo em diferentes áreas, uma possível vitória de Bolsonaro é preocupante, já que ele não parece ter o preparo, a experiência e a habilidade política necessários para comandar o país. Mas é inegável que ele vocaliza valores e convicções de muitos brasileiros comuns, que a mídia e uma certa esquerda teimam em ignorar. Além disso, esses eleitores percebem nele sinceridade, característica que não enxergam nos outros candidatos, o que não é pouco. De certa forma, Bolsonaro é consequência da esquerda e da guerra de narrativas por ela promovida no nosso país.

Você é um crítico bastante duro e muito consistente do PT. Em um determinado momento, você escreve: “Os principais responsáveis pelo crescimento da direita no Brasil são aqueles que se dizem de esquerda. Por miopia, ingenuidade ou má-fé, continuam apoiando incondicionalmente um partido que não hesitou em adotar práticas criminosas, sem se darem conta de que o mal que Lula, Dilma e o PT causaram à imagem da esquerda só é comparável, em intensidade e duração, ao mal que a ditadura militar fez à imagem da direita”. Mesmo depois da Lava Jato e do Lula preso, por que o PT continua sendo uma ameaça?

Porque, derrotado nas ruas, no Legislativo e no Judiciário, o campo lulopetista precisou apostar todas as suas fichas no acirramento da guerra de narrativas. É no discurso dos intelectuais e artistas, nas redes sociais e, principalmente, nas salas de aula das escolas e universidades com partido que sobrevive a narrativa de que o PT representa o bem, e os outros partidos representam um mal; de que o impeachment de Dilma Rousseff foi um golpe das elites; e de que Lula é a alma mais honesta do país. Ao mesmo tempo, entre os brasileiros mais humildes, persiste a ideia de que “Lula ajudou o pobre”. A tentativa de retomar o poder passa por esses dois grupos: a classe média culpada formada na universidade com partido e a pobreza desinformada, mal-acostumada a ficar pendurada em mesada do governo, em vez de exigir educação e trabalho. Não convém subestimar o poder eleitoral desses dois grupos.

Quando se fala em “guerra”, devido ao estabelecimento de critérios claros e moralmente relevantes, um dos conceitos mais difíceis é o de “guerra justa”. A guerra de narrativas pode ser justa? Numa palavra: como “lutar” uma guerra de narrativas e evitar uma “escalada para os extremos”?

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Não pode haver justiça onde não há verdade. A única relação honesta com a guerra de narrativas é a de desconstrução. É preciso responder à mentira com a verdade, à manipulação com a clareza. Não deixar nada sem resposta.