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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Doutrina Social da Igreja

O humanismo solidário

O projeto socialista de um "homem novo" e uma "nova humanidade" levou aos gulags. (Foto: Russian State Archive/Wikimedia Commons/Domínio público)

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Na semana passada, abordei o tema do “humanismo integral” na Doutrina Social da Igreja. No texto de hoje, analisarei o conceito de humanismo a partir da noção de solidariedade. Para se ter uma ideia da importância desse conceito na Doutrina Social, o Compêndio o cita mais de 140 vezes. Para ser mais preciso, a DSI fala em “humanismo integral e solidário”. Mas afinal, o que ela quer dizer com isso?

O conceito aparece pela primeira vez assim: “A humanidade compreende cada vez mais claramente estar ligada por um único destino que requer uma comum assunção de responsabilidades, inspirada em um humanismo integral e solidário: vê que esta unidade de destino é frequentemente condicionada e até mesmo imposta pela técnica ou pela economia e adverte a necessidade de uma maior consciência moral, que oriente o caminho comum”.

Para compreendermos esse apelo de uma “unidade de destino” é fundamental visualizarmos a solidariedade não apenas como uma necessidade normativa abstrata, mas como uma exigência pragmática dentro da visão católica. Nesse sentido, a solidariedade é vista como o alicerce que une a diversidade humana e permite que os avanços técnicos e econômicos sirvam ao bem comum e não se tornem forças de processo de despersonalização alienante. A solidariedade aparece como um dos “princípios da Doutrina Social da Igreja”.

A solidariedade do humanismo integral estabelece uma forma de relacionamento que se baseia na reciprocidade e na partilha equitativa de recursos e oportunidades – e que não seja a resposta do socialismo materialista e revolucionário

A Doutrina Social da Igreja, portanto, sustenta que a solidariedade não deve ser entendida meramente como uma resposta emocional às injustiças sociais ou desigualdades econômicas. É, acima de tudo, uma disposição permanente para buscar o bem comum – que discutirei em mais detalhes no próximo texto. De qualquer forma, este conceito deve indicar uma realidade que ultrapasse o individualismo egoísta típico de sociedades liberais. A solidariedade do humanismo integral estabelece uma forma de relacionamento que se baseia na reciprocidade e na partilha equitativa de recursos e oportunidades – e que não seja, obviamente, a resposta do socialismo materialista e revolucionário.

O documento faz apelo ao sentido da graça como alicerce da solidariedade. Vamos analisar um trecho da introdução: “A Igreja, sinal na história do amor de Deus para com os homens e da vocação de todo o gênero humano à unidade na filiação do único Pai, também com este documento sobre a sua Doutrina Social entende propor a todos os homens um humanismo à altura do desígnio de amor de Deus sobre a história, um humanismo integral e solidário, capaz de animar uma nova ordem social, econômica e política, fundada na dignidade e na liberdade de toda a pessoa humana, a se realizar na paz, na justiça e na solidariedade”. Para concluir a passagem, o documento mostra que o humanismo solidário “só será possível se os indivíduos e os grupos sociais cultivarem em si mesmos e difundirem na sociedade os valores morais e sociais, de forma que sejam verdadeiramente homens novos e artífices de uma nova humanidade, com o necessário auxílio da graça”.

Destaco a seguinte passagem: “verdadeiramente homens novos e artífices de uma nova humanidade”. Por que isso é fundamental para entendermos o sentido da Doutrina Social?

Notem que suprimi aqui o “com o necessário auxílio da graça”. Fiz isso para mostrar o consciente contraste da Doutrina Social com as ideologias modernas: o humanismo secular e liberal. Essas ideologias alegam que o ser humano não depende de uma ordem divina ou da graça, pois todos os princípios morais são autoevidentes para a razão. Historicamente, os conceitos de autonomia e bem-estar estão diretamente associados à modernidade secular.

O humanismo secular centra-se na capacidade humana de entender e remodelar o mundo sem recorrer a explicações sobrenaturais. Ele valoriza a autonomia individual, a razão e a ciência como meios para melhorar a condição humana. Nesta visão, “homens novos” e “artífices de uma nova humanidade” são formados através da educação, do pensamento crítico e do compromisso com valores humanísticos universais, como a igualdade, a liberdade e o bem-estar coletivo.

No século 20, várias tentativas de reconstruir a sociedade de acordo com ideais utópicos resultaram em regimes autoritários que justificaram repressões e atrocidades em nome de um “novo homem”

O liberalismo, nesse contexto, promove a ideia de que os indivíduos devem ser livres para perseguir seus próprios objetivos, desde que não infrinjam os direitos dos outros. No humanismo liberal, a transformação social é vista apenas como resultado da interação de indivíduos livres que operam dentro de um mercado ou de uma sociedade civil regidos por leis justas e instituições democráticas. Aqui, a “nova humanidade” surge de um processo de negociações e compromissos onde os valores individuais e coletivos são constantemente reavaliados e harmonizados. Amputam do homem público sua vocação espiritual. Tudo é jogado para o foro íntimo.

Até aqui tudo bem. Porém, podemos ver a coisa em retrospecto. A tentativa de construir “homens novos” e uma “nova humanidade” pode trazer alguns riscos interessantes. No século 20, várias tentativas de reconstruir a sociedade de acordo com ideais utópicos resultaram em regimes autoritários que justificaram repressões e atrocidades em nome de um “novo homem”. Foi justamente a visão de “nova humanidade” que veio acompanhada de supressão do pluralismo e erosão das liberdades individuais. Os totalitarismos do século 20 levaram a lógica secular às últimas consequências. Criaram, justamente, uma religião substituta de culto ao novo homem.

Em virtude desse reconhecimento histórico, a Doutrina Social, em conformidade com o Evangelho de Cristo, contrasta seu humanismo solidário na crença de que a transformação social e pessoal deve ser impulsionada pela graça divina, que guia e sustenta os esforços humanos para alcançar justiça, paz e solidariedade. O humanismo solidário seria apenas mais uma ideologia se não contasse com “o necessário auxílio da graça”.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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