Em artigo intitulado Francisco, o papa que entendeu a ciência, Reinaldo José Lopes quis compor um louvor. Só precisa ser avisado de que cometeu um baita equívoco. O texto é até simpático, esforçado. Ele atribui ao papa Francisco o feito de ter, vejam só, reconciliado fé e ciência. É um enredo sedutor, sim – sobretudo para quem desconhece a longa e rica história da relação entre Igreja e ciência.
A Igreja Católica não precisou esperar por Jorge Mario Bergoglio para compreender a ciência. Há séculos, promoveu e sustentou a investigação racional do mundo. Eu ouso dizer (e não estou sozinho) que inventou o que hoje chamamos Ciência. Décadas de doutrinação progressista podem tentar obscurecer esse legado, mas ele persiste – é um fato teimoso, documentado, monumental. E não adianta acenar com Galileu, porque, sim, ele era católico – e piedoso.
Foi a Igreja quem fundou as primeiras universidades europeias. Quem preservou e traduziu manuscritos clássicos durante a derrocada do Império Romano. Quem deu abrigo a cientistas que mudaram o curso do pensamento ocidental. Gregor Mendel era monge agostiniano. Georges Lemaître, sacerdote católico. O primeiro fundou a genética moderna. O segundo formulou a teoria do Big Bang.
A Igreja Católica não precisou esperar por Jorge Mario Bergoglio para compreender a ciência. Há séculos, promoveu e sustentou a investigação racional do mundo
E há ainda os jesuítas – por muito tempo, a maior ordem religiosa voltada ao ensino e à ciência. No século 17, eram responsáveis por cerca de 30 colégios e observatórios astronômicos de excelência em toda a Europa e Ásia. Foram pioneiros na cartografia da China, no estudo da sismologia, da botânica tropical, da óptica e da matemática. O padre Matteo Ricci levou a geometria euclidiana ao Oriente. Athanasius Kircher escreveu tratados que anteciparam teorias da biologia moderna. Os jesuítas criaram o termo “sismologia” e realizaram os primeiros registros científicos de terremotos. No século 18, cerca de 35 crateras lunares foram nomeadas em homenagem a cientistas jesuítas.
Ignorar tudo isso, como faz o autor, é contribuir, mesmo que involuntariamente, para a caricatura progressista que ainda tenta pintar a Igreja como inimiga da razão. Não foi. Não é.
A Laudato Si’ é louvável, sem dúvida. Só não inaugura nada. O que ela faz é atualizar um repertório. João Paulo II já alertava sobre os limites do crescimento e o risco ambiental. Bento XVI falava em “ecologia humana” e ficou conhecido como “papa verde”. Francisco retoma, amplia, comunica tudo isso. Mas não inventa nada.
O entusiasmo do autor com o tom científico da encíclica revela ignorância. Cita o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) como se fosse um milagre papal. Parece não saber que a Igreja tem, desde 1603, uma Academia de Ciências. Que Pio XII falava de evolução. Que o Vaticano abriga um observatório astronômico.
Francisco não é um cientista. Não quer ser – já desistiu da Química quando resolveu ser sacerdote. É um pastor que escuta o mundo. Seu mérito está nisso. Entretanto, ver nele um herói epistemológico já é demais. Precisar transformá-lo no papa que finalmente entendeu a ciência não passa de um gesto de fé ideológica – bem longe de qualquer análise científica.
Reinaldo José Lopes descreve o papa como um bastião contra o negacionismo. Verdade. Mas não é um caso isolado no Magistério da Igreja. Há décadas de esforço doutrinário por parte da Igreja para valorizar a razão. Basta ler a Fides et Ratio. Ou acompanhar o que diz a Pontifícia Comissão Bíblica. Nada disso aparece no texto. A ignorância aqui é funcional.
Há décadas de esforço doutrinário por parte da Igreja para valorizar a razão. Basta ler a Fides et Ratio
O autor da coluna vê na Laudato Si’ uma espécie de paper do Vaticano. Com revisão de literatura, urgência e proposições. Tudo ali está certo. Só esqueceu de um detalhe: a encíclica é um documento espiritual. Não se reduz a dados. Sua força está na integração entre razão, moral e transcendência. Isso o autor buscou ocultar. O texto também não compreende o que é o Magistério. Acha que é só um conjunto de opiniões do papa. Não é. É uma tradição interpretativa. Quando Francisco escreve, ele não inventa. Ele interpreta. Ele herda e continua.
Estranho o autor falar em “compaixão e evidência” sem fornecer evidências desse legado. É possível que a surpresa do colunista venha mesmo de um equívoco e não da má-fé. Talvez tenha optado por uma narrativa simples. A imprensa prefere heróis a tradições. Prefere o novo. Prefere a performance ao contexto. O resultado é um elogio muito mais ao fato de Francisco representar para o imaginário progressista um papa... progressista.
No fim, a coluna de Reinaldo José Lopes oferece uma narrativa fácil. Francisco aparece como um messias laico. Um papa pop, que agrada porque parece moderno. O texto é até simpático. Mas erra ao reduzir a tradição da Igreja a uma caricatura. Erra ao imaginar que a ciência é uma novidade eclesial. Erra ao fazer de Francisco um ponto fora da curva.