Ao longo de toda a sua história, a democracia encontrou muitos inimigos, tanto externos quanto internos. Embora esteja na moda falar em crise da democracia, o fato é que desde o seu nascimento, entre os gregos há mais de 2 mil anos, a democracia vive em crise. Por isso, não dá para defender a democracia apenas apelando para análises do tipo conceitual desprovidas de qualquer materialidade histórica; por exemplo, a definição tão vazia quanto inútil de que a democracia seria “o poder do povo”.
A consolidação da democracia exige constante atualização e vigilância. Defender princípios é também defender sua história. No entanto, a história da democracia ensina que as ameaças mais perigosas são internas e não externas. Considero que, por ser a forma de organizar a sociedade que melhor revele a natureza humana, a democracia consegue, mais do que qualquer outro regime, trazer para dentro de si a complexidade e a fragilidade da nossa humanidade.
Historicamente, a democracia e seus inimigos podem ser apresentados em três grandes momentos: Na Grécia Clássica, com o auge da polis ateniense, a democracia foi construída em bases relativistas. Na modernidade, com o advento das sociedades industriais, a democracia gerou a tensão entre indivíduo e coletivo. Na vida contemporânea, os inimigos da democracia foram as guerras de facções – o totalitarismo, seu ponto alto.
Uma cidade incapaz de fundamentar o poder na justiça e que opta por fundamentar a justiça no poder está fadada a matar o melhor dos seus homens
Desde a Grécia Antiga, a democracia apresentou suas fragilidades internas. O caso mais emblemático foi a deliberação do tribunal popular que optou por matar aquele que era o melhor dos homens: Sócrates. Ora, como pode o melhor dos regimes matar o melhor dos seus cidadãos?
Esse problema foi o ponto de partida para toda a reflexão da filosofia de Platão e sua crítica à democracia e aos sofistas, os defensores do relativismo e da democracia. Relativismo, aqui, deve ser entendido como um tipo de conhecimento cuja verdade se limita à mera opinião que se resolve no espaço público com a retórica.
A tese fundamental do relativismo consiste no seguinte: todos os critérios que determinam o que as coisas são, incluindo os bens morais e cívicos, são condicionados e circunstanciais à experiência subjetiva humana. Em suma, no nível político, isso significa a perda de um fundamento objetivo para o que é justiça. Há opiniões sobre justiça, não verdade. Uma cidade incapaz de fundamentar o poder na justiça e que opta por fundamentar a justiça no poder está fadada a matar o melhor dos seus homens.
Na modernidade, impõe-se o problema da tensão pendular entre indivíduo e coletivo, que no limite se encarna na disputa ideológica entre democracia liberal e democracia social ou, simplesmente, entre liberalismo e socialismo. De um lado, aqueles que priorizam o indivíduo em detrimento do coletivo; por outro lado, aqueles que priorizam a coletividade em detrimento do indivíduo.
No polo do indivíduo, o risco político é incorrermos no individualismo exacerbado, o indivíduo que se aliena da vida de sua comunidade moral. No polo do coletivo, corre-se o risco de o indivíduo ser diluído no coletivo. Nesse sentido, o indivíduo passa ser rechaçado; a vida interior, combatida ou tragada para dentro da coletividade. Não há mais privacidade. Cada indivíduo representa a imagem do todo.
Por fim, no século 20, as disputas de facções escancararam que a política democrática não foi capaz de administrar conflitos que brotavam em seu interior. A política, nesse contexto, passa a ser experienciada como a luta amigo-inimigo. Nada mais do que conflito de facções disputando suas ideologias como verdades absolutas.
O interlocutor, o adversário político – figura central para a consolidação do espaço democrático –, não é alguém que eu busque persuadir com argumentos e convencer com a boa retórica, mas a coisa que ameaça e precisa ser aniquilada. Os regimes totalitários resultaram de facções que chegaram ao poder e impuseram suas crenças particulares como critério universal de um mundo justo e perfeito.
Como dirá o historiador Martin Malia, e eu encerro essas reflexões com ele, “o totalitarismo tornou-se o maior dos inimigos da democracia moderna, pois também se tratava de uma expressão, ainda que perversa, das inevitáveis aspirações patrióticas e sociais da própria democracia. Como tais aspirações não parecem destinadas a desaparecer num futuro imaginável, a possibilidade de novas perversões nunca pode ser excluída”.
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