Iniciarei uma série de textos sobre a arte da argumentação. Para ser mais preciso, gostaria de compartilhar algumas dicas com aqueles que se interessam por ler textos argumentativos. Pessoalmente, por causa da minha formação filosófica e da minha prática docente, textos assim fazem parte da minha rotina de trabalho. Há muitos bons manuais que abordam o assunto de forma pragmática, com regras claras, concisas e precisas acerca de como argumentar melhor e como ser capaz de identificar falácias para não cair em armadilhas retóricas. Não tenho a pretensão de substituir essa literatura; ao contrário, ao longo dessa pequena série, indicarei alguns dos melhores manuais disponíveis.
Não custa lembrar que eu devo começar traçando aqui uma distinção importante entre textos argumentativos e textos narrativo-expressivos. São duas funções importantes da linguagem humana que não podem ficar de fora desta conversa. Para muita gente, ler e escrever tem a ver com expressar sentimentos e buscar se identificar com experiências subjetivas. Trata-se, lamentavelmente, do excesso de psicologização da leitura. Devemos repudiar esses excessos. Textos assim são considerados bons quando nós nos identificamos com os dramas pessoais ou as alegrias da conquista e superação de alguém, por exemplo. Histórias edificantes e dramáticas fazem muito sucesso no mercado editorial. Cumprem muitas funções, com exceção do valor de verdade.
A linguagem argumentativa pode até adotar o recurso expressivo para fins retóricos. Contudo, argumentar e expressar são duas manifestações completamente distintas da linguagem. Se com a linguagem podemos dar ordens, lamentar, evocar, chamar, pedir, apontar, descrever, julgar etc., vale ressaltar que a função narrativo-expressiva jamais pode ser confundida com a função discursiva-argumentativa. Esperar de textos argumentativos a solução de uma controvérsia, que tem a ver com o valor de verdade de uma tese, a partir de uma experiência edificante ou dramática é um erro imperdoável.
O poder da boa literatura não está na argumentação, mas no exercício da imaginação, que consiste na capacidade de expor experiências e fazer o leitor viver como se estivesse bem ali, presente na situação descrita
Por isso, essa introdução será dividida em duas partes. Hoje, abordarei um pouquinho da função narrativo-expressiva.
No seu excelente Leitura e Escrita de Textos Argumentativos, Marcus Sacrini propõe uma boa definição acerca da função narrativo-expressiva. Diz ele que a função narrativo-expressiva da linguagem “refere-se à exposição de histórias vividas, ficcional ou veridicamente, cuja estruturação está intrinsicamente ligada ao ponto de vista subjetivo (seja do autor, do narrador ou de personagens, se houver), o qual envolve diferentes graus de apreensão afetiva e valorativa dos tópicos narrados. A expressividade em questão remete ao papel das capacidades vivenciais afetivo-valorativas na elaboração da discursividade”. Ou seja, a linguagem narrativo-expressiva serve para compartilhar experiências existenciais, morais, estéticas e espirituais.
Não há argumentos nesse tipo de texto e não se pode exigir isso deles. Ninguém deve ler A Metamorfose de Kafka com a expectativa de que o narrador dará explicações de como, certa manhã, Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos e acordou metamorfoseado num inseto monstruoso. O poder da boa literatura não está na argumentação, mas no exercício da imaginação, que consiste na capacidade de expor experiências e fazer o leitor viver como se estivesse bem ali, presente na situação como aquela vivida por Gregor Samsa. Até hoje eu tenho memórias da irmã de Gregor, Greta Samsa, tocando violino no jantar.
A arte retórica incorpora parte da função narrativo-expressiva para tocar a imaginação e o coração do leitor e ouvinte. Muitos são os recursos retóricos usados para despertar compaixão, medo, angústia, alegria, pena, amor etc., no leitor.
O grande Górgias, expoente da retórica clássica, escreveu as mais belas palavras acerca da função da linguagem narrativo-expressiva. No famoso Elogio de Helena, ele diz o seguinte a respeito da linguagem expressiva: “Um estremecimento de medo repleto de espanto, uma compaixão que provoca lágrimas abundantes, um sentimento de nostalgia entra no espírito dos que a ouvem. A alma é afetada (uma afecção que lhe é própria), através das palavras, pelos sucessos e insucessos que concernem a outras coisas e outros seres animados”, pois “é possível, pois, pelas palavras, tanto o medo acalmar e a dor afastar quanto a alegria engendrar e a compaixão intensificar”.
O grande problema da função narrativo-expressiva da linguagem, portanto, é que o valor desses textos não está na verdade. A propósito, o problema do valor da verdade nem faz sentido nesse contexto. Se a função do texto narrativo-expressivo é colocar o leitor sob o ponto de vista subjetivo do narrador, seu problema é o da intensidade de partilhar experiências. É um modo de apreensão do mundo, mas de um mundo mediado pela vivência e valores de quem narra e lê.
Trouxe o tema do valor da verdade para encerrar a primeira parte desta introdução por uma razão simples: a demarcação do valor de verdade consiste na alma do texto argumentativo. Mas isso deixarei para a próxima semana.
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