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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Jornalismo

O corneteiro, o bajulador e o verdadeiro escocês

O ditador venezuelano, Nicolás Maduro, transformado por jornalistas brasileiros em “direitista” para negar a realidade de que a esquerda pode ser muito autoritária. (Foto: EFE/Palácio de Miraflores)

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Você aprende muita coisa com bajuladores de governo e torcedores corneteiros. Um é o exato extremo do outro. Explico. Começarei com o torcedor corneteiro. Como sabem, sou palmeirense – um tantinho fanático, segundo minha esposa. De uns anos para cá, como vocês também já sabem, meu time se transformou em uma máquina de ganhar títulos (estou sendo ligeiramente clubista aqui, confesso) devido ao trabalho de Abel Ferreira. Mesmo assim, com tantos títulos e vitórias, o torcedor corneteiro não perdoa.

O torcedor corneteiro, apesar de tudo, xinga, desconfia e está sempre pronto para apontar falhas. Para ele, todos são bagres. O torcedor corneteiro é aquele que nunca está completamente satisfeito. Sempre encontrará razões para criticar. Aliás, muitas vezes parece torcer contra o próprio time, torce para o zagueiro falhar, para o atacante errar, para o lateral se machucar... justamente para poder dizer, com orgulho, que tinha razão: o time do professor Pardal não presta. Sinceramente? Não gosto muito disso, mas não posso desmerecer sua importância.

No extremo oposto, contraste isso com o jornalista bajulador. O bajulador sempre veste as cores do governo que cobre. Tal jornalista ignora falhas e exagera virtudes. Pinta um retrato que está longe de refletir a realidade das decisões políticas e das “gafes” do governo. Enquanto o corneteiro é excessivamente crítico, o bajulador é perigosamente complacente. Se o governo toma uma medida ruim, ele dá um jeito de elogiar; se o presidente querido fala uma bobagem, ele ameniza; e, se apoia um ditador, ele justifica. Não importa, o bajulador sempre encontra a narrativa adequada para anunciar o paraíso na terra do seu político de estimação.

Se o governo toma uma medida ruim, o jornalista bajulador dá um jeito de elogiar; se o presidente querido fala uma bobagem, ele ameniza; e, se apoia um ditador, ele justifica

Esta semana, tivemos as eleições na Venezuela. Nicolás Maduro foi reeleito após uma contagem de votos extremamente controversa. Para ser bem preciso e chamar as coisas pelo nome, o ditador foi “eleito democraticamente” – a quantidade de aspas fica a critério do leitor. Aqui no Brasil, ficamos na expectativa da posição do governo petista e de Lula. Para a surpresa de zero pessoas, apoiaram o companheiro venezuelano: “não houve nada de grave” ou “de assustador”, foi “um processo normal”. Amigos servem para essas coisas.

Mas o que realmente me chamou a atenção não foi isso. Não me surpreende que Lula apoie Maduro. O que me chamou a atenção foi o que ouvi e li de alguns jornalistas. Não que eu esperasse algo deles. O que me chamou a atenção foi como construíram a narrativa. Usarei até em aulas de lógica informal para ilustrar a “falácia do escocês”. Valdo Cruz, em rede nacional, disse o seguinte:

“Bem, eu comentava até com o Ariel aqui primeiro, né, a gente perguntando se hoje dá realmente para chamar a Venezuela de um governo de esquerda... hoje é um governo conservador... Esquerda é democracia. Isso, isso que eu ia falar, é um governo conservador contra aborto, contra o casamento gay, militarista, aliado de evangélicos, não vejo mais ele, ele é mais um governo de esquerda de fachada e que não respeita a democracia, mas eu queria, nesse ponto, eu queria até ir além. Por que que o Brasil fica se posicionando em defesa de um país que de esquerda não tem mais nada, zero, não tem mais nada, zero, seria então porque o que a gente percebe é um PT apoiando Maduro, é achar que a Venezuela tem um governo de esquerda, não tem na minha opinião mais, né, o governo Lula também, o governo Lula começa a se distanciar, até onde vai se distanciar, vamos checar o que vai acontecer depois dessa apresentação dos boletins de urnas.”

Já Guga Chacra, em seu comentário, explicou: “Eu não sei por que o PT tem esse fascínio com o regime do Maduro, que não é nem um regime de esquerda, é uma cleptocracia ditatorial de viés militar. Além de ser uma figura extremamente conservadora ou retrógrada em questões comportamentais”.

Para Valdo e Guga, de repente, o regime de Maduro não é de... esquerda. Além de todos os absurdos possíveis, a estratégia não é muito difícil de ser compreendida. O que explicarei para vocês, com esses dois exemplos, é a “falácia do escocês”.

A falácia do escocês, também conhecida como falácia do escocês de verdade, é um tipo de raciocínio que envolve a redefinição de uma categoria para excluir um contraexemplo, protegendo, assim, uma generalização inicial.

Em vez de enfrentar o fato de que movimentos e líderes de esquerda também adotam práticas antidemocráticas, a falácia reconfigura a definição de “esquerda” para manter uma imagem idealizada e purificada

A origem do nome No true Scotsman vem de um exemplo hipotético proposto pelo filósofo Antony Flew em sua discussão sobre o pensamento religioso. No exemplo que ele usou, um escocês afirma que nenhum escocês coloca açúcar no seu mingau de aveia. No entanto, quando é apontado que um escocês foi visto colocando açúcar no mingau, o primeiro escocês responde: “Ah, mas nenhum verdadeiro escocês colocaria açúcar no mingau”. A afirmação original é arbitrariamente modificada para excluir o contraexemplo que a refuta.

Não é fascinante? Vamos imaginar o seguinte. Suponha que um líder político de esquerda implemente políticas que incluem cortes em programas sociais, contrariando as expectativas tradicionais associadas à esquerda de promover o bem-estar social. Quando criticado por essas ações, defensores podem argumentar: “Nenhum verdadeiro político de esquerda cortaria benefícios sociais”. Neste caso, a falácia do escocês é usada para redefinir o que significa ser um “verdadeiro” político de esquerda. O truquezinho está em excluir todas aqueles cujas ações contradizem a definição idealizada, sem enfrentar a realidade das decisões políticas.

A afirmação de que “Nicolás Maduro não é de esquerda, já que a esquerda verdadeira é democrática” redefine arbitrariamente o que significa ser de esquerda para excluir especificamente Maduro. Ela se fundamenta na premissa de que a esquerda, por definição idealizada, deve ser democrática. Em vez de enfrentar o fato de que movimentos e líderes de esquerda também adotam práticas antidemocráticas, a falácia reconfigura a definição de “esquerda” para manter uma imagem idealizada e purificada. Noutras palavras, ela excluirá todos os casos que não se encaixam nessa narrativa. Ou seja, Valdo e Guga são tão autoritários (pois são arbitrários) quanto Maduro e Lula. Nesse caso, poderíamos afirmar: Valdo e Guga não são verdadeiros escoceses.

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