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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Doutrina Social da Igreja

Sobre a liberdade e o servilismo

Detalhe de "Santo Agostinho", de Philippe de Champaigne. (Foto: Wikimedia Commons/Domínio público)

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Em um mundo onde a liberdade foi confundida com a licença para fazer qualquer coisa, a Doutrina Social da Igreja Católica nos propõe uma reflexão interessante: “O homem pode orientar-se para o bem somente na liberdade, que Deus lhe deu como sinal altíssimo da Sua imagem”. Este princípio trata da essência humana na perspectiva cristã. Da liberdade não como um direito ilimitado, mas como um caminho para a realização do bem comum e da dignidade humana. Pela liberdade encontramos vocação do homem: ser imagem e semelhança de Deus.

Segundo Agostinho, há dois amores: o amor a si mesmo, até o desprezo de Deus, e o amor a Deus, até o desprezo de si mesmo. No amor de si, centrado no egoísmo e na autossuficiência, o ser humano se coloca como centro de tudo. Desejo de satisfação pessoal, poder, riqueza e prazeres, muitas vezes à custa dos outros. É a liberdade autocentrada, cheia de si, autorreferente. Uma forma de amor que conduz à desordem interior e, portanto, ao aprisionamento do egoísmo. Numa palavra: ao servilismo, a servidão voluntária

Por outro lado, no amor a Deus, centrado na devoção e na entrega do outro, o ser humano coloca Deus como o centro de tudo. Busca de virtudes, serviço ao próximo, humildade e paz, muitas vezes sacrificando os próprios desejos. É a liberdade altruísta, para além de si mesmo. Uma forma de amor que conduz à ordem interior e, portanto, à verdadeira libertação do homem.

Fugir da lei moral não resulta em verdadeira liberdade, mas em sua antítese: um autoaprisionamento que rompe a fraternidade com os semelhantes e se rebela contra a verdade que vem do alto

O texto da Doutrina Social da Igreja assim continua: “A dignidade humana exige, portanto, que o homem atue segundo a sua consciente e livre escolha, isto é, movido e determinado por convicção pessoal interior, e não por um impulso interior cego, ou por mera coação externa”. Ou seja, o agir por impulso é castração da liberdade, talvez pior do que a brutalidade da repressão política. Um regime autoritário pode destruir o homem externamente, mas um homem verdadeiramente livre não deve temer a perda de sua vida exterior, pois sua liberdade, ancorada na dignidade, não se dobra a tiranias. A liberdade interior, portanto, é a pedra fundamental de todas as liberdades.

A Doutrina Social da Igreja não despreza as liberdades sociais e econômicas, mas as entende como componentes fundamentais para o pleno exercício do livre arbítrio. O documento ressalta que o exercício do livre arbítrio requer condições econômicas, sociais, políticas e culturais adequadas: “o reto exercício do livre arbítrio exige precisas condições de ordem econômica, social, política e cultural que são muitas vezes desprezadas e violadas. Estas situações de cegueira e injustiça prejudicam a vida moral e levam tanto os fortes como os frágeis à tentação de pecar contra a caridade. Fugindo da lei moral, o homem prejudica sua própria liberdade, acorrenta-se a si mesmo, rompe a fraternidade com seus semelhantes e rebela-se contra a verdade divina”.

Aqui a Igreja enfatiza que fugir da lei moral não resulta em verdadeira liberdade, mas em sua antítese: um autoaprisionamento que rompe a fraternidade com os semelhantes e se rebela contra a verdade que vem do alto. A Doutrina Social exorta que a solução para as injustiças sociais e econômicas não reside apenas em mudanças externas, mas também em um apelo profundo às capacidades espirituais e morais da pessoa. Portanto, a verdadeira transformação exige uma conversão interior contínua, pois somente assim as mudanças econômicas e sociais podem realmente servir ao homem.

Para ilustrar essa discussão, recorrerei à metáfora dos zumbis em séries como The Walking Dead. Pessoalmente, sou fascinado por filmes de zumbis. Os zumbis, criaturas desprovidas de vontade e consciência, representam o resultado extremo da perda de liberdade e humanidade. No entanto, a verdadeira ameaça na série não são os zumbis, mas os próprios seres humanos, cujas almas são deformadas pelo medo, pela ganância e pela ausência da liberdade interior. Em The Walking Dead, vemos que, em um mundo sem ordem social justa e moral, os sobreviventes se tornam piores que os mortos-vivos. Mas por quê?

Segundo a Doutrina Social, a liberdade “não tem o seu ponto de partida absoluto e incondicionado em si própria, mas na existência em que se encontra e que representa para ela, simultaneamente, um limite e uma possibilidade. É a liberdade de uma criatura, ou seja, uma liberdade dada, que deve ser acolhida como um gérmen e fazer-se amadurecer com responsabilidade. Caso contrário, morre como liberdade, destrói o homem e a sociedade”. Em outras palavras, quando a liberdade é exercida de forma egoísta, sem consideração pelos limites e responsabilidades intrínsecas, ela perde seu verdadeiro sentido e se transforma em uma força destrutiva.

Então, quais seriam esses limites? Essa pergunta responderei no próximo texto.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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