Esses dias uma leitora me perguntou qual seria minha opinião sobre “lugar de fala”. Confesso que, do ponto de vista teórico mais refinado, nunca tinha me preocupado detidamente com este assunto; não obstante eu já tenha recebido alguns recadinhos dos defensores da nova ética da censura – pois, pensando bem, a expressão “este não é seu lugar de fala” é só um jeito sofisticado para mandar alguém “calar a boca”.
Para vocês terem uma ideia do estado da arte da sofisticação retórica, veja o que diz este trecho escrito pela principal defensora do “lugar de fala” atualmente no Brasil: “O lugar social não determina uma consciência discursiva sobre esse lugar. Porém, o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas e outras perspectivas”.
Há tantos pressupostos aqui nestas linhas. Destacaria dois que estão em níveis distintos. O primeiro pressuposto é o sociológico: aceita-se um certo tipo de teoria da estratificação social. O segundo, mais complexo, é o epistemológico (de fundamentação do conhecimento), que discutiria o valor de verdade do discurso.
A expressão “este não é seu lugar de fala” é só um jeito sofisticado para mandar alguém “calar a boca”
A abordagem sociológica de “lugar social” de fato nos oferece perspectivas distintas a partir do status social, que em geral indica um certo lugar de prestígio no arranjo social. Porém, para os defensores do “lugar de fala”, prestígio se reduz a “privilégio social” dentro de uma rede hierárquica de conflito que esconde a grande verdade descoberta por eles: o opressor quer silenciar o oprimido.
Afinal, quando se recorre ao “lugar de fala”, o objetivo nada mais é do que dar visibilidade a pessoas que tiveram suas vozes e saberes silenciados ao longo de um árduo e violento processo histórico: as minorias. Portanto, ainda do ponto de vista sociológico, esse modelo teórico de estratificação social como teia de conflitos precisa vir acompanhado das teorias identitárias dos movimentos sociais.
O problema dessas abordagens é o grau de abstração conceitual adotado para falar das experiências de indivíduos concretos interagindo numa sociedade complexa. Os agentes sociais são categorias teóricas e não a concreta efetividade das experiências de pessoas reais. Para os teóricos do lugar de fala, quem age e fala na sociedade é uma ideia abstrata: a ideia de “mulher negra”, a ideia de “homem branco cis” (para ficar com dois exemplos).
Por isso que, do ponto de vista da fundamentação epistemológica (desculpem o “filosofês”), defender o lugar de fala é um problemão. Já que o conhecimento verdadeiro não pode ser justificado por prestígio social. O que sustenta o valor de verdade de um discurso não é o lugar que o emissor ocupa na sociedade, por mais prestígio social que possa ter.
O método que confirma a eficácia de uma vacina para Covid-19, por exemplo, não tem a ver com prestígio social determinado pela luta entre opressores e oprimidos no arranjo triste de uma sociedade hierarquizada – embora os cientistas que desenvolverem a vacina devam receber todo o prestígio do mundo por esse feito.
Resumindo: o valor de verdade de um discurso não é determinado por posicionamentos na cadeia social. Xerxes poderia se autodeclarar um deus vivo encarnado e determinar a posição de cada um de seus súditos, mas a autoproclamação não implica verdade, exceto para o fantasioso delírio de Xerxes. Um exemplo mais próximo de nós: imagine que terraplanistas, por um engenhoso recurso de marketing, começassem a ganhar “privilégios” sociais. Isso nada implicaria no formato da Terra.
O que os teóricos do lugar de fala desejam é implodir a sociedade pela guerra, revolucionar as instituições sociais; destruí-las, portanto
Do ponto de vista epistemológico, o lugar de fala precisa ser o lugar da verdade, independentemente do prestígio social de quem fala.
Além desses pressupostos, eu gostaria de trazer outras três questões ligadas ao tema do “lugar de fala” que precisam ser colocadas em primeiro plano. 1. o tema da representatividade política; 2. o tema da empatia e compaixão humana; 3. o tema da disposição para o questionamento.
Com relação à representatividade política, penso que numa sociedade democrática faz bastante sentido político o questionamento por representatividade. Lugar de fala é evocar justamente um ponto de partida para exigir representação no espaço político. Democraticamente, instituímos o conflito de ideias como o espírito da vida social.
No entanto, há dois problemas que vão apontar para os temas da empatia e do questionamento. A ideia de lugar de fala não pode ser um lugar fechado e exclusivo, mas um lugar inclusivo dessa dimensão ética da empatia e compaixão. Se somos seres sociais e compartilhamos a vida mediante a linguagem, falar é um dos principais caminhos que me levam à compreensão do sofrimento e da exigência do outro por justiça.
Se no ambiente público minha fala não tem legitimidade porque não é vivida em primeira pessoa em referência à autocompreensão de um grupo, contraditoriamente o lugar de fala destrói a possibilidade de diálogo e, última análise, de compaixão. Em outros termos, vira mesmo lugar de guerra. E é isso o que os teóricos do lugar de fala desejam: implodir a sociedade pela guerra, revolucionar as instituições sociais; destruí-las, portanto.
Nosso universo de experiência discursiva é ilimitado e podemos questionar absolutamente qualquer coisa. Se alguém diz que eu não posso falar de um assunto por não pertencer a um grupo X, Y ou Z, já que não tenho representatividade legítima, então estamos sendo negligentes com o fato de o ser humano poder questionar e pensar a respeito de tudo. Ou seja, a tese do lugar de fala se transforma numa defesa implícita da servidão voluntária.
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